15/05/2023

TESOUROS LITERÁRIOS

Os tempos mudaram, principalmente quando se trata de tecnologia. Essa revolução tecnológica, principalmente nos meios de comunicação, atingiu em cheio as relações interpessoais, de forma a mudar inclusive, os relacionamentos. Referimo-nos, especificamente, a uma carta escrita à mão. Alguns bons anos atrás, uma conquista amorosa exigia trabalho, esforço, romantismo e um pouco de sorte. E para isso não havia Internet, redes sociais e todas as facilidades de que dispomos hoje em dia.

Os meios de comunicação passaram por grandes transformações. A invenção da internet modificou tudo aquilo que conhecíamos a respeito das formas de comunicação. Essa rede que integra mundialmente, milhares de computadores foi capaz de aproximar pessoas, diminuindo longas distâncias e reduzindo o tempo de transmissão de uma informação. Atualmente, os celulares são um dos meios de comunicação mais utilizados no mundo.

Longe de mim de ser contra as mudanças ou o progresso. Nada disso! Mas é sempre positivo podermos lembrar ou recuperar os costumes do passado e aplicá-los, por exemplo, aos nossos relacionamentos, a fim de recuperar os gestos românticos.

O romantismo era mais atenuado em anos anteriores, não era como hoje que as pessoas agem diferente. Quando alguém se apaixonava por uma pessoa, elas escreviam uma carta, perfumavam e mandavam uma lembrancinha. Um ato bem romântico que deixou de existir com a chegada da tecnologia.

A mudança da escrita é tão clara que atualmente, em vista da evolução da tecnologia, a caligrafia que tinha tanta relevância, acabou perdendo o primor por conta do acesso aos computadores.

Um pedaço de papel com palavras escritas a caneta ou a lápis, era responsável por manter as pessoas informadas sobre a vida de amigos e de familiares.

Hoje em dia estamos tão acostumados com a comunicação instantânea que parece perda de tempo só pensar em usar uma caneta. Porque dá mais trabalho: escrever, envelopar, selar, postar, esperar. É muito mais fácil enviar um e-mail ou conversar por vídeo.

A comunicação surgiu da necessidade do ser humano de passar informação uns aos outros. Após o surgimento da escrita, a carta tornou-se um meio de comunicação bastante utilizado para enviar informações, estabelecendo uma comunicação interpessoal.

A história da escrita começou no período da pré-história, quando os homens faziam desenhos nas paredes das cavernas como uma forma de se comunicar. Esses desenhos, chamados de pinturas rupestres, consistiam na transmissão de ideias desses povos, pois representavam seus desejos e necessidades. A arte rupestre foi o início da comunicação entre os seres humanos. As primeiras formas de escrita eram diferentes e surgiram na Mesopotâmia, China, Egito e América Central.

Durante sua história, a carta foi escrita em muitos tipos de materiais e muitos foram os canais pelos quais era enviada. Assim, as primeiras cartas foram escritas com um material chamado de papiro, um tipo de papel feito com uma planta chamada papiro, 3.000 anos antes de Jesus nascer. Muitos anos depois, no século 2 antes de Cristo, em uma região na Turquia chamada de Pérgamo, foi inventado o pergaminho, um tipo de papel feito de pele de carneiros e bezerros. O papel que utilizamos nos dias atuais foi inventado 100 anos depois do nascimento de Cristo por um chinês chamado T’sai Lun.

Outro importante fato histórico, a ser observado, se refere ao modo como as cartas chegavam até seu destinatário. Os pombos foram utilizados por muito tempo como meio de envio de mensagens. Os cavalos foram também uma outra forma de envio postal utilizada.  Já no Egito, mais de 4 mil anos antes da Era Cristã, já existiam os sigmanacis, mensageiros que levavam recados escritos a pé ou montados em cavalos e camelos.

Através dos séculos a troca de informações define impérios, governos e até mesmo guerras. Enviar mensagens para longas distâncias em pouco tempo sempre foi um desafio. Por isso, o telégrafo foi uma revolução no século 18. Com essa máquina, era possível digitar uma mensagem que chegava em poucos instantes no local desejado através de código.

No Brasil, as cartas chegaram junto com os primeiros portugueses. Assim que a esquadra de Cabral aportou, Pero Vaz de Caminha enviou uma correspondência ao rei, comunicando o descobrimento das novas terras. Na carta, Pero Vaz de Caminha mostra como foi o primeiro encontro entre os portugueses e os indígenas. Um pequeno trecho: “Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel.”

“A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência.”

A história epistolar está cheia de cartas abertas, aqueles que são escritos com a intenção de serem lidos por um grande público.

Por exemplo, a carta escrita por Martin Luther King Júnior destinada aos Companheiros Clérigos, conhecida com a Carta da prisão de Birmingham. King escreveu: “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar”. “'Qualquer pessoa que vive dentro dos Estados Unidos nunca pode ser considerada um estranho em qualquer lugar dentro de seus limites”.

Temos a carta de Gandhi para Adolf Hitler: “É evidente que, no momento, o senhor é a única pessoa do mundo capaz de impedir uma guerra que pode reduzir a humanidade ao estado de barbárie. O senhor pagaria esse preço, por mais valioso que lhe pareça o objetivo que tem em mente?” A carta, datada de 23 de julho de 1939, pedia que o ditador evitasse conflitos armados. O escrito nunca chegou ao destinatário por uma intervenção do governo britânico. Poucos meses depois, em setembro, a Alemanha invadiu a Polônia no episódio que marcou o início da Segunda Guerra Mundial.

Não podemos esquecer, entre os livros que formam a Bíblia, as 21 cartas escritas por Paulo e outros seguidores de Cristo, direcionadas aos povos, como os romanos e os habitantes da cidade de Corinto, na Grécia Antiga.

Algumas cartas marcam a história do nosso país, como por exemplo, as escritas por Princesa Isabel, Getúlio Vargas e Jânio Quadros.

Por uma carta, mais especificamente uma carta de lei, a Princesa Isabel, em 1888, extinguiu a escravidão do Brasil. O documento, escrito com caligrafia rebuscada, brasão imperial e tinta em tons de preto, azul, vermelho e dourado, ficou conhecido como Lei Áurea.

Ressaltamos, também, as duas cartas deixadas por Getúlio Vargas, horas antes do suicídio, em 24 de agosto de 1954, e dirigida ao povo brasileiro. Uma carta escrita e outra datilografada, que a imprensa divulgou como oficial. Há controvérsias quanto a autoria, mas nunca conseguiu-se provar quem realmente teria escrito se não o próprio Vargas.  Em ambas, destaca-se o final contundente: “... lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história. ”

E dentro do mesmo contexto, a carta melancólica de despedida de Jânio Quadros. Getúlio Vargas, está longe de ser o único presidente a usar cartas para justificar ou tomar decisões. O ex-presidente do Brasil Jânio Quadros (1917-1992) usou o recurso para anunciar sua renúncia, depois de sete meses no comando do país. “Fui vencido pela reação e assim deixo o governo. Nestes sete meses cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigavelmente, sem prevenções, nem rancores”, escreveu.

Importante lembrar, o filme “Central do Brasil”, obra cinematográfica de Walter Salles. No filme, a personagem de Fernanda Montenegro, através da personagem Dora, uma amargurada ex-professora, escreve cartas para pessoas que não aprenderam a ler e escrever. Infelizmente, para não fugir da regra, ela embolsa o dinheiro sem sequer postar as cartas. No filme, conhecemos fragmentos de histórias de um povo sofrido, mas cheio de sonhos e esperança.  Nesse contexto, se apresenta o problema do analfabetismo, falta de oportunidades, desigualdade no país e a desonestidade brasileira. Esse filme, recebeu diversas premiações em Festivais no mundo todo, sendo indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro no ano seguinte de sua estreia.

As cartas sempre estiveram presentes em minha vida, na infância e pré-adolescência escrevia cartas para meus avós e quando cheguei na juventude, comecei escrever cartas de amor para minha amada Maria. Até hoje guardo as 34 cartas que escrevi no período, principalmente de namoro/noivado, sem contar as cartas também escritas por ela, nesse período.  Todas elas me levam de volta ao passado. Considero meu “tesouro literário”. O ato de abrir o envelope e ler algumas palavras de quem a gente gosta, a quem queremos bem, tem um valor indizível, invisível, incomensurável. Eu me lembro de quando contava os dias para receber a resposta das cartas enviadas.

A escrita ajudava-nos muitas vezes a expressar de forma mais clara os sentimentos que palpitam no nosso interior. Para escrever uma boa carta de amor não era preciso ser um Pablo Neruda. Ele dedicava-se a esta arte. 

Escrever uma carta, dedicar tempo a pensar em versos, em frases que encantam, ou mesmo, de maneira simples tentar traduzir sentimentos em palavras de amor, parece distante para muitas pessoas  na correria dos dias atuais.

A carta manuscrita ainda é um meio carinhoso de comunicação com às pessoas amadas. A carta carrega coragem em suas linhas, e os “ecos vibrantes da saudade” nas entrelinhas. Ela tem singularidades incomparáveis. Sempre irá carregar um pouco de quem você é, de como está, como se sente. A carta escrita à mão carrega muito mais do que palavras. É troca de amor e de dor, de alegria e tristeza, de sabedoria e aprendizado, de mudança e permanência. Enfim, é veículo de sentimentos reais.

Conforme escreveu o professor português Vasco Botelho de Amaral, “As cartas amorosas imortalizam vivências e sentimentos do casal. Funcionam não apenas como um modo de comunicar, mas em especial de tornar presente, de substituir aquele que a escreveu – e que está ausente – pelo que está escrito”.

Em meio a tantas palavras é difícil não se emocionar, não se divertir, não se remeter a um mundo que quase não existe mais. É tão bom ler cartas! Não sei se meus filhos ou netos lerão cartas. Acho que só "e-mails" que possivelmente serão rapidamente deletados. É uma pena...

A carta é um abraço dado à distância. É a expressão do amor em silêncio. É por isso que o papel que contém palavras impressas do e-mail recebido nunca será a mesma coisa que a carta escrita de próprio punho.

Em um mundo onde tudo é tão rápido e instantâneo, dedicar tempo e emoção para escrever uma carta é realmente uma demonstração de apreço pelo destinatário da carta.

Hoje, só abrimos as seguintes correspondências: contas, propagandas, panfletos de ofertas. Só. Uma lástima.

Ainda bem que existe o período do Natal, pois é nessa época que aumenta a demanda de cartas pessoais, pois Papai Noel é o responsável por esse aumento.

O evangelho diz que o homem sábio sabe tirar do seu tesouro coisas velhas e coisas novas (Mateus 13, 52). Portanto, precisamos saber tirar lições do passado e do presente, para direcionar melhor o nosso futuro! Ter a coragem de enxergar aquilo que funciona e que não funciona, e fazer escolhas livres, conscientes e responsáveis.

Se por um lado é verdade que algumas coisas do passado não servem mais para hoje, também é verdade que precisamos resgatar muitas coisas, que deram e podem continuar dando certo hoje.

26 respostas para “TESOUROS LITERÁRIOS”

  1. Fred Maia disse:

    Mestre Viana, suas interpretações são sábias!! Esta solução de escrever caligraficamente na mídia celulósica (lembra do autor do termo?) vai sumir daqui a + 100 anos!! Textos como este seu ajudam a ganharmos mais alguns anos!! Abraço!!

  2. CLAUDIO LUIZ PONTES disse:

    Mais um ótimo texto.
    Parabéns

    • Marcilio neto disse:

      Semana passada estava comentando com nosso amigo Antonio Carlos Ribeiro Junior, a arte de escrever e o fascínio de recebe-las, vc enriqueceu meu tema da melhor maneira possível, parabéns amigo!👏👏

  3. Fernanda Viana disse:

    👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻 eu li cartas hehe, mas Lucas acho que não lerá

    • José Damasceno Nobre disse:

      Infelizmente são verdadeiras o conteúdo desses sábios comentários;mas quem sabe compartilhando resgataremos um pouco esses bons tempos.

      • Marcilio neto disse:

        Semana passada estava comentando com nosso amigo Antonio Carlos Ribeiro Junior, a arte de escrever e o fascínio de recebe-las, vc enriqueceu meu tema da melhor maneira possível, parabéns amigo!👏👏

  4. Daniel Sales Correa disse:

    Sem contar o tremendo impulso que as cartas davam a cultura. Sim, porque para escrever palavras lindas, que representassem a grandeza do sentimento que se pretendia demonstrar, era necessário consumir pilhas e pilhas de livros. A poesia perdeu parte do seu público com o fim do costume de enviar cartas de próprio punho.

  5. Carlos Mosca disse:

    Muito legal e informativo.

  6. Wilson Araujo disse:

    Perfeito o artigo.

    precisamos resgatar e não deixar alguns hábitos do passado morrer para as futuras gerações. Tenho cartas e fotos (retratos) guardados ate hoje

    Missão quase impossível

  7. JOÃO WILSON DE LUNA FREIRE disse:

    Zé! Mais um brilhante texto!
    Voltei ao passado, lembrando das cartas amorosas escritas e recebidas há 52 anos atrás, da mulher que escolhi para dividir durante minha trajetória de vida, alegrias e tristezas. Minha amada NIOMAR!
    Zé, as cartas escritas à distância, nós aproximava através dos sentimentos que sentíamos pela pessoa amada. Hoje a tecnologia faz com que possamos ficar próximos na rapidez da comunicação e com uma distância quilométrica de sentimentos.
    Ex:= Uma família de 4 pessoas em um restaurante para comemorar “O DIA DAS MÃES” , não existe diálogo pois todas as 4 estão operando o maldito celular usando suas redes sociais.
    Aquele abraço! Saudações Tricolores!!!
    👍👍👍👏👏👏🤝🤝🤝🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬

    • Nadja dias f.pinto disse:

      Sábias palavras

      • FERNANDO LUIS CASSIMIRO disse:

        Era muito gostoso escrever, enviar e ficar contando os dias para a resposta chegar pelos correios…
        Viana, estamos esperando o lançamento de um livro de sua autoria. Esperamos que seja breve!!!

  8. Walter Alves disse:

    Amigo Viana,

    Estou impressionado com a beleza do texto e sua desenvoltura literária!

    Penso que é na leitura que podemos conhecer e encontrar mundos que jamais existiram, com tanta riqueza de detalhes e precisão, que é possível nos imaginarmos dentro de um lugar que agora existe na nossa mente.

    Você tem uma imaginação incrível, além da habilidade de escrever tudo que criou, possibilitando que todos os seus leitores e amigos embarquem nesse novo mundo moderno.

    Parabéns, amigo!

    Forte abraço,

    Walter Alves
    15/05/2023

  9. Wandycler disse:

    Parabéns Viana.
    Belo texto. Sabias palavras. O que aprendemos com as coisas do passado, com a história, nos deixa claro que nosso tempo foi muito bom em todos os aspectos,
    Inclusive nos ensinou, dentro desse texto, a expressar tão sabias palavras.

  10. Ivan Dantas disse:

    Excelente texto, amigo Viana! Um resgate importante dessa forma de comunicação que transmite emoção e arte e precisa ser valorizada.

  11. Vera Lucia Araújo de Oliveira disse:

    Concordo com você, a tecnologia mudou nossas vidas , tudo era mais autêntico, mais romântico, tínhamos a letra mais bonita, pesquisavamos nos dicionários, fazíamos nossas cartinhas. Realmente tudo mudou.
    Claro tem as vantagens , de resolvermos tudo com uma mensagem ou um email. Mas vamos tentar de vez em quando, fazermos nossos bilhetinhos. Um grande abraço.

  12. Sinval disse:

    Excelente texto lembro demais das cartas que escrevi.

  13. Rodolfo Rego disse:

    Excelente texto! Parabéns, grande personalidade por trás das belíssimas linhas

  14. Sinval disse:

    Excelente, escrevi muitas.
    Valeu 👍👍

  15. Sinval disse:

    Excelente texto! Lembro muito das cartas que escrevi

  16. Guilherme dos Santos Neto disse:

    Que assunto bom! Valeu, se bem que você sempre escolhe assuntos importantes, aqui em casa temos várias cartas guardadas, a mais importante, é uma da minha mãe, que ela escreveu com 91 anos, ela gostava muito de escrever carta.
    Grande abraço amigo.
    ❤️❤️❤️

  17. Leickton disse:

    Eita! que a nostalgia nessa leitura, foi muito boa. Acho que o escritor, acordou inspirados no romantismo que eram as cartas de amor de alguns anos atrás…kkkkk
    Valeu a leitura!

  18. Pacheco disse:

    Amigo excelente texto.
    👏👏👏👏👏👏

  19. WASHINGTON SOARES DE ALMEIDA disse:

    Viajei no tempo lembrando as cartas e cartões que enviava e recebia . Parabéns Viana por mais um belo texto e de voltar a um passado brilhante com cartas e cartões . Também ainda tenho algumas cartas e cartões guardados . Muito bom .

  20. Marcus Soares disse:

    Conheço bem este sentimento que te inspirou esta prosa magnífica. Minha paixão de adolescente por aquela que viria a se tornar minha esposa e companheira até os dias de hoje, foi regada a muitas cartas, nunca esqueci a emoção e ansiedade em receber dela a resposta às que lhe escrevia. Era um outro tempo, havia romantismo e inocência, quem sabe um dia seja lembrado da mesma forma que o Renascimento para as artes.
    Parabéns Viana, mais uma vez.

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