12/10/2021

O vírus da saúde brasileira

Fonte: Manaus Olimpica

O livro “Subsídios para o estudo de problemas brasileiros” (1979) de autoria do professor Eurivaldo Tavares, no capítulo Saúde – Diagnóstico e Diretrizes, faz um raio X dos problemas da saúde no Brasil da época, evidenciando o enorme déficit de médicos, de enfermeiras e de leitos hospitalares, além do alto custo da medicina e dos produtos farmacêuticos. Além disso, complementa: “Os profissionais da medicina, além de poucos, são mal distribuídos, muito sofrendo o interior do país. Mais da metade dos municípios brasileiros não tem um só médico. De modo geral, os médicos recém-formados não são inclinados a se deslocarem para o interior...”.  Alguma semelhança com o sistema de saúde no Brasil dos tempos atuais?

Voltando ao Brasil-Colônia, lembramos que o território brasileiro era ocupado unicamente por povos indígenas que já tinham algumas enfermidades, mas a colonização portuguesa trouxe diversas outras comuns na Europa, que não existiam por aqui. Isso causou um grande problema de saúde entre a população, já que os nativos não tinham imunidade para combater determinadas enfermidades; como consequência, milhares deles morreram. Como não existia infraestrutura na área de saúde, quem precisava buscar auxílio geralmente recorria aos pajés, curandeiros, boticários ou barbeiros.

No Brasil colonial, eram os curandeiros e barbeiros que proporcionavam atendimento de saúde aos menos favorecidos (Fonte: Scielo)

Com a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, o Brasil começou a receber mais investimentos em infraestrutura. Foram criados os cursos de Medicina, Cirurgia e Química.

Em 1822, D. Pedro I declara a independência brasileira com relação a Portugal, bradando: “Independência ou morte!”  Relacionando o bordão com saúde pública, pode-se dizer que houve avanços durante o período Imperial – de acordo com o Dr. Drauzio Varella, pouco eficazes.

Na realidade, durante os 389 anos de duração da Colônia e do Império, pouco ou nada foi feito com relação à saúde. Não havia políticas públicas estruturadas, muito menos a construção de centros de atendimento à população. O acesso aos tratamentos e cuidados médicos dependia da classe social: pessoas pobres e escravos viviam em condições duras e poucos sobreviviam às doenças que tinham. As Santas Casas de Misericórdia foram, durante décadas, a única opção de acolhimento e tratamento de saúde para quem não tinha dinheiro. As pessoas nobres e colonos brancos, que tivessem terras e posses, tinham maior facilidade de acesso aos médicos e remédios da época.


Igreja da Misericórdia de Porto Seguro, fundada na primeira metade do século 16 pela primeira Irmandade da Santa Casa da Misericórdia do Brasil, que também fundou o primeiro hospital. Atualmente é o Museu de Arte Sacra de Porto Seguro, com imagens do século 16 (Fonte: Guia Geográfico História do Brasil)

Com a instauração da Republica do Brasil, em 1889, o Pais continuava sofrendo com epidemias e falta de saneamento básico. A cidade do Rio de Janeiro apresentava um quadro sanitário caótico, caracterizado pela presença de diversas doenças graves que acometiam à população, como a varíola, a malária e a febre amarela.

Fonte: Biblioteca Nacional

Na era do Estado Novo (Era Vargas) poucas foram as investidas no setor da saúde pública, podemos citar a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública (1930) e o fortalecimento do Instituto Oswaldo Cruz, como referência nacional no controle epidemias e endemias.

É importante destacar a implantação da Lei Eloy Chaves, estabelecida pelo Decreto Legislativo 4.682/1923, que criou as chamadas Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) para os empregados ferroviários. Depois estendida para empregados dos serviços de força, luz, bondes, mineração, para os telegráficos e portuários.  As CAP’s concediam aos trabalhadores associados ajuda médica, aposentadoria, pensões, para dependentes e auxílio funerário.  O Decreto n° 20.465/1931, estendeu o Regime da Lei Eloy Chaves aos empregados dos demais serviços públicos concedidos ou explorados pelo Poder Público Federal. É considerada a primeira lei de previdência social.

Posteriormente, as CAP’s existentes a época foram reunidas nos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP), organizados pelo Estado, como autarquias federais, por categoria profissional, surgindo, assim, uma previdência social de abrangência nacional. Todavia, a unificação dos IAP’s só ocorreu em 1977, por meio do Decreto-Lei nº 72/1966, após a criação do Instituto Nacional da Previdência Social (INPS).

Infelizmente, durante o regime militar, a saúde sofreu cortes orçamentários e muitas doenças voltaram a se intensificar. Em 1970, apenas 1% do orçamento da União era destinado para a saúde. Em 1977 foi criado o Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) que era ligado ao Ministério da Previdência e Assistência Social, e fornecia atendimento com uma ressalva: só eram atendidas as pessoas que tinham carteira assinada e contribuíam para a Previdência. O Inamps entra em declínio no final dos anos 1980, por pressão de movimentos por uma reforma sanitarista no País e por constituir um sistema, cuja conta não fechava: arrecadação não cobria os gastos.

Em setembro de 1990 tivemos a regulamentação do Sistema Único de Saúde (SUS). Na Constituição de 1988 ficou definido que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. A frase define a ideia de qualquer pessoa pode ir a uma unidade básica de saúde ou a um hospital público e receber atendimento de graça. O sistema brasileiro foi inspirado no britânico, o NHS (Nacional Health Service). O SUS não é apenas atendimento médico, mas também vigilância em saúde e fornecimento de medicamentos.  

O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma das maiores conquistas da população brasileira (Fonte: APUBH)

O SUS é o único sistema público de saúde do mundo que “atende uma população com mais de 200 milhões de pessoas” gratuitamente, universal (para todos) e financiado pelo dinheiro dos impostos. Dos países reconhecidos por possuírem sistema de saúde público e universal, como Reino Unido, Canadá, Dinamarca, Suécia, Espanha, Portugal e Cuba, nenhum tem população superior a 100 milhões de habitantes. Nos EUA não há sistema universal de saúde – é necessário pagar para ter atendimento ou remédios. O governo subsidia planos de saúde para alguns grupos específicos, como idosos ou pessoas de baixa renda – no entanto, mesmo para eles o atendimento e os remédios não são de graça. Na China, o sistema público de saúde não é gratuito, já que existem os seguros de saúde públicos e os privados.

Pelo que evidenciamos, apesar de inúmeras conquistas e avanços em sua história, o sistema saúde pública no Brasil continua enfrentando diversos problemas. O saneamento básico ainda é precário em várias regiões do Brasil. Temos retorno de doenças consideradas erradicadas ou controladas há muito tempo. Em muitos hospitais faltam leitos, principalmente quando trata-se de UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Além de que é comum a grande espera para atendimento. O mesmo acontece com a marcação de exames. Ressaltamos ainda que, a concentração e distribuição de médicos pelo território brasileiro é bastante desigual.

Fonte: SOU + SUS
Fonte: SOU + SUS
Fonte: SOU + SUS

Todavia entendo que nosso SUS (Sistema Único de Saúde) foi uma das grande conquista da população brasileira, sendo reconhecido como um dos maiores do mundo e usado como modelo em muitos outros países. Entretanto, sofre desafios do mau gerenciamento e a insuficiência de investimentos financeiros. No Orçamento Público aprovado para 2020, que totaliza R$ 3,6 trilhões, foi destinado apenas R$ 125,6 bilhões para a Saúde. Isso corresponde à 3,5% do total, enquanto que a média mundial é de 11,7%. Atualmente, 75% dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS, o restante da população utiliza a saúde privada.

Fonte: SOU + SUS

Durante esta pandemia do coronavirus ficaram ainda mais evidentes alguns dos problemas do sistema de saúde do Brasil. Como por exemplo: a falta de profissionais, leitos, aparelhos, etc. Inclusive a atitude de nossos políticos. Talvez estes sejam o grande vírus da saúde brasileira.

“Um país onde falta saúde, educação, segurança e ainda pagamos os impostos mais altos do mundo, precisa ser repensado.” Marcos Ferreira.

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10/10/2021

Aprendemos alguma lição com a Revolta da Vacina ocorrida em 1904?


A charge da revista O Malho, de 29 de outubro de 1904, parecia prever a revolta que se instalaria na cidade poucos dias depois: nem com um exército, o “Napoleão da Seringa e Lanceta”, como muitos se referiam a Oswaldo Cruz na época, conseguia conter a fúria da população contra a vacinação compulsória (Acervo Fiocruz)

Nos últimos tempos tenho intensificado minha leitura sobre História do Brasil e da Humanidade com objetivo de entender um pouco mais da política brasileira nos dias atuais, jogada num fosso profundo de uma crise de intolerância e sem líderes. “Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la” (filósofo Edmund Burke). Em outras palavras: “Um povo sem história está fadado a cometer no presente e no futuro os mesmos erros do passado” (Historiadora Emília Viotti).

Os acontecimentos na saúde pública me trouxeram a lembrança os fatos ocorridos na Revolta da Vacina, uma insurreição popular ocorrida no Rio de Janeiro no período de 10 a 16 novembro de 1904 contra a vacina anti-varíola. Quando o presidente Rodrigues Alves assumiu o governo, nas ruas da cidade do Rio de Janeiro acumulavam-se toneladas de lixo. Desta maneira o vírus da varíola se espalhava. Proliferavam ratos e mosquitos transmissores de doenças fatais como a peste bubônica e a febre amarela que matavam milhares de pessoas anualmente.

Foto: MultiRio

Era necessário combater o mosquito e o rato, transmissores das principais doenças. Primeiro, o governo anunciou que pagaria a população por cada rato que fosse entregue às autoridades. O resultado foi o surgimento de criadores desses roedores a fim de conseguirem uma renda extra. Devido às fraudes, o governo suspendeu a recompensa pela apreensão dos ratos.

De forma a melhorar o saneamento precário e combater as doenças, o presidente Rodrigues Alves nomeou para diretor geral da Saúde Pública o médico sanitarista Oswaldo Cruz. Uma das propostas do médico para combater a doença foi a vacinação obrigatória contra a varíola, para todo brasileiro com mais de seis meses de idade. Oswaldo Cruz trouxe uma regulamentação ainda mais problemática. O governo passaria a exigir comprovantes de vacinação para que as pessoas pudessem matricular seus filhos nas escolas, começar em empregos, viajar, se hospedar na cidade e, até mesmo, se casar. Quem se negasse a ser vacinado seria multado.

Quando o conteúdo da proposta de Oswaldo Cruz chegou às mãos da imprensa, o povo iniciou a maior revolta urbana do Rio de Janeiro até então. Políticos, militares de oposição e a população da cidade se opuseram a vacina. A imprensa não perdoava Oswaldo Cruz dedicando-lhe charges cruéis ironizando a eficácia do remédio.

Espalhou-se por vários bairros da cidade, o conflito envolveu uma violenta repressão policial. Seis dias após ter sido iniciado, 945 pessoas foram presas, 100 feridos, 30 mortos e 461 deportadas para o Estado do Acre chegava ao fim a Revolta da Vacina. Em decorrência do conflito, o governo suspendeu a obrigatoriedade da vacinação, declarando estado de sítio. Exército, Marinha e Polícia foram para as ruas, repreendendo o conflito, e restabeleceram a ordem no Rio de Janeiro.

Foto: Wikipedia

É interessante observar que durante a Revolta, os militares tentaram usar a massa popular insatisfeita com um pretexto para a tentativa de um golpe, que não obteve sucesso contra o presidente Rodrigues Alves.

Outro ponto importante em ressaltar a falta de tato do governo no esclarecimento acerca da vacina. A grande maioria da população, formada por pessoas pobres e desinformadas, não conheciam o funcionamento de uma vacina e seus efeitos positivos. Numa sociedade onde as pessoas se vestiam cobrindo todo o corpo, mostrar os seus braços para tomar a vacina foi visto como “imoral”. 

Muitos estudiosos apontam que os motivos da Revolta da Vacina, em todas as classes sociais, foram a junção entre a política de tratamento com a população pobre e o sentimento de “invasão dos lares” das famílias mais ricas, obrigadas a se vacinarem.

Movimentos populares como a Revolta da Vacina ajudam a contar a história do Brasil, demonstrando o contexto em que estão inseridos e a maneira como esses conflitos se dão. Mais do que uma insatisfação contra a Lei da Vacina Obrigatória, a Revolta simboliza o período conturbado pelo qual passou o Rio de Janeiro, principalmente pelo caráter higienista e excludente adotado pelos governantes da época. Estes fatos ocorreram em 1904. Aprendemos a lição?