17/04/2023

Até quando vamos brincar de passarinhar indígenas?

O tempo passas mas as lembranças ficam. É nesse contexto, que recordo dos meus primeiros ensinamentos sobre a história do Brasil, ainda no antigo primário (hoje ensino fundamental). Inicialmente, aprendemos que em 22 abril de 1500 os navegadores portugueses descobriram o Brasil. Hoje temos a consciência que na realidade Portugal não descobriu o Brasil, ele ocupou, invadiu, submetendo dessa maneira diversos nativos aqui existentes. Se o Brasil já possuía uma população, não se tratou de uma descoberta, e sim de uma conquista.

O primeiro documento escrito relatando a existência dos nativos é a Carta de Pero Vaz Caminha a El Rey D. Manuel. A primeira referência de Caminha ao gentio da terra é a seguinte "E dali houvemos vista de homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro". Informa ainda em sua Carta que os índios " ... não lavram, nem criam", o que contribui para a ideia do índio preguiçoso, que ainda hoje vive no imaginário de muitos. Também é relatado que os índios se espantaram ao entrar em contato pela primeira vez com uma galinha. Não conheciam o cavalo, o boi e a galinha.

Esses nativos trocaram presentes com os lusos sendo que entre os presentes dados pelos primeiros, estavam papagaios e araras que eram espécies de aves totalmente desconhecidos até o momento, pelos navegadores europeus. Ao chegar à Europa, a corte portuguesa ficou impressionada com a beleza das plumas daquelas aves. Por esse motivo, por algum tempo, chamaram a terra de onde aquelas aves haviam sido trazidas de "Terra dos Papagaios".

Que bela terra encontrada pelos irmãos portugueses. Podemos até comparar com o paraíso bíblico.  Um verdadeiro jardim do Éden para cultivar, pescar e viver. Mas infelizmente, assim como relatado no Livro dos Gênesis, apareceram as serpentes em forma de portugueses e fizeram os reais brasileiros sentirem-se nus, e passaram a serem conhecedores do bem e do mal.  

O primeiro contato entre nativos e portugueses foi de muita estranheza para ambas as partes. As duas culturas eram muito diferentes e pertenciam a mundos completamente distintos. Alguns historiadores, caracterizam esse momento como um “encontro de culturas” e outros como um “desencontro de culturas”, visto que as relações foram estabelecidas desde o início, pautadas numa hierarquia, a qual pressupunha a superioridade do homem branco (europeu) em relação ao “outro” dito selvagem/não “civilizado” (indígena).

É nesse cenário, e a partir desse choque de culturas, que se tem início a colonização portuguesa no Brasil, o qual corresponde a um processo massivo de extermínio de povos indígenas, invasões e conflitos entre portugueses e indígenas, doenças contagiosas oriundas de Portugal se espalhando no Brasil e exploração das terras brasileiras. Ou seja, o “descobrimento” do Brasil é um processo marcado pela violência colonial.

No primeiro século de contato, 90% dos indígenas foram exterminados, principalmente por meio de doenças trazidas pelos colonizadores, como a gripe, o sarampo e a varíola. Nos séculos seguintes, milhares de vítimas morreram ou foram escravizadas nas plantações de cana-de-açúcar e na extração de minérios e borracha.

Não podemos esquecer expedições realizadas no século XVIII, denominadas Entradas e Bandeiras, que tiveram como objetivo a captura de índios para o trabalho escravo e a procura por metais preciosos, como ouro, prata e diamante.

O bandeirantismo, foi responsável pela morte e exploração de um grande número de indígenas. Usualmente, livros didáticos, reconstituições históricas, meios de comunicação costumam ressaltar uma imagem heroica dos bandeirantes paulistas que desbravaram os sertões brasileiros. Um verdadeiro genocídio sem controle.

Declarada a independência do país e instalado o regime monárquico, pouco se fez em favor dos povos indígenas. Os Governos, imperial e provinciais, promoveram várias iniciativas no sentido de eliminar os contingentes indígenas, que viviam nas áreas de interesse para o estabelecimento de imigrantes europeus. Nas áreas de colonização europeia, a insegurança provocou diversas interpelações dos governos europeus ao governo brasileiro, reclamando segurança para seus súditos.

A Proclamação da República não alterou de imediato esse quadro. Pelo contrário, acentuou-o. A construção da estrada de ferro noroeste do Brasil, em São Paulo, no início do século, provocou a quase dizimarão a um grupo Kaingang. A violência foi tal que um relato da época informa que o divertimento dos trabalhadores da estrada, aos domingos era brincar de "passarinhar índio” ou seja, matavam os índios da mesma forma em que se caçavam pássaros. É nesse contexto que em 1910, o governo, por iniciativa do marechal Cândido da Silva Rondon, descendente de índios, em tarefa de demarcação das fronteiras, criou o Serviço de Proteção do Índio (SPI) e reservas florestais protegidas, para sobrevivência das aldeias. Em 1967, o SPI foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A trajetória dessas duas organizações oscilava entre proteger os indígenas e favorecer os proprietários fundiários na expansão dos latifúndios.

Durante o Regime Militar, entre as décadas de 70 e 80, a Amazônia passou a ser povoada, por conta do lema “terra sem homens para homens sem-terra”. Também, na fase do “progresso” do Brasil, as regiões aldeadas por indígenas passaram a ser povoadas por fazendeiros, a fim de intensificar a agropecuária. Entretanto, este povoamento foi realizado sem nenhum controle ambiental. Hidrelétricas, rodovias e a agropecuária passaram a ser desenvolvidas, desmatando as florestas e matando indígenas. É a época da Transamazônica, da barragem de Tucuruí e da de Balbina, do Projeto Carajás.

Pela geopolítica traçada pelo governo militar, a Amazônia tinha o papel de fornecedor de matérias-primas, para compensar o déficit do balanço de pagamentos gerado pela aquisição de petróleo, a descoberta aurífera tem papel significativo como garantia de pagamento dos juros da dívida externa do Brasil, bem como para lastrear compras à vista do petróleo importado, uma vez que as reservas cambiais brasileiras se encontravam praticamente esgotadas.

Vale ressaltar que a garimpagem sempre esteve presente na história do Brasil e, encontrou pela frente sociedades indígenas indefesas que constituíram presas fáceis a seu domínio avassalador. Na época das entradas e bandeiras e nas formas posteriores assumidas pela garimpagem, seus reflexos negativos sobre as sociedades indígenas nunca despertaram interesse ou protesto da opinião pública nacional e internacional. Todavia, a intensificação da garimpagem no Brasil no início da década de 80 (descoberta do garimpo de Serra Pelada), segundo ciclo do ouro amazônico e brasileiro, renovada e fortalecida em seu potencial de destruição do meio ambiente com a utilização de potentes equipamentos de extração, principalmente na Amazônia, trouxe, em avantajada escala, o martírio para várias sociedades indígenas; contudo, desta vez, a opinião pública, nacional e internacional, não deixou os índios sozinhos na dor e no infortúnio de que sempre foram vítimas na história do Brasil.

Espalhados por todo o Brasil, os Povos Indígenas têm fundamental importância na história e na cultura do nosso país. Infelizmente, muitas tribos, influenciadas pela cultura dos brancos, perderam muitos traços culturais. Podemos dizer que foram violentados em seus domínios pela introdução de doenças, que até então desconheciam, tais como o sarampo, a varíola, a gripe, a tuberculose, a sífilis, e a gonorreia.  Os principais problemas que as comunidades indígenas enfrentam hoje são a consequência daqueles que surgiram há anos. Nos dias atuais há problemas como a miséria, o alcoolismo, o suicídio, a violência interpessoal, que afetam consideravelmente essa população.

Infelizmente, a discriminação sistêmica e estrutural contra os povos indígenas tem sido exacerbada em alguns seguimentos da sociedade brasileira.  O pior, que alguns políticos alimentam essa discriminação. Relembrando algumas declarações: "Os índios estão cansados de serem índios. Eles querem beneficiar-se com os programas do Governo" (Ex. Ministro Mario Andreazza - 1973). Neste contexto, não é de estranhar a fanfarronice do Ex. Deputado Gastão Müller (1973): "Se os fazendeiros quisessem, poderiam ter partido para uma luta armada e seria muito fácil vencer os índios". Mas recentemente: “Se eleito, eu vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho. Não serve mais" (2018); “Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios” (1998). Acredito que este parlamentar tenha feito alusão ao genocídio dos povos indígenas dos Estados Unidos durante o século XIX, que resultou no massacre de milhões e na destruição irreversível de várias culturas. Ou então assistia muitos filmes de bang-bang, também conhecidos como westerns, retratam muito bem este momento da história triste dos Estados Unidos, mostrando o conflito entre índios e colonos americanos. Afirmações como estas, talvez explique os fatos lamentáveis ocorridos com os Yanomamis em seu território. Uma verdadeira crise humanitária, um verdadeiro genocídio.

Lembramos que o tradicional Dia do Índio, comemorado todo 19 de abril, passou a ser chamado oficialmente de Dia dos Povos Indígenas (Lei 14.402, de 2022). A mudança do nome da celebração tem o objetivo de explicitar a diversidade das culturas dos povos originários. O termo ‘indígena’, que significa ‘originário’, ou ‘nativo de um local específico, é uma forma mais precisa pela qual podemos nos referir aos diversos povos que, desde antes da colonização, vivem nas terras que hoje formam o Brasil.

Será que temos motivo para a total celebração da data sabendo que o desaparecimento das línguas e da cultura indígena continua evoluindo no Brasil, principalmente na região da Amazônia? Possivelmente não. Mas é um espaço de reflexão, fazer uma autocrítica, e planejar estratégias de como avançar no total cumprimento da Constituição Federal promulgada em 1988 (primeira a trazer um capítulo sobre os povos indígenas), onde reconhece os "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". Eles não são proprietários dessas terras que pertencem à União, mas têm garantido o usufruto das riquezas do solo e dos rios.

Apesar dos defensores dos índios estarem vencendo brilhantemente a batalha ideológica, seus inimigos têm vencido a guerra real que se trava na sociedade brasileira contra os grupos indígenas, despojando-os de seus territórios e mesmo exterminando-os fisicamente. É tempo de transferir a luta do campo puramente ideológico para tentar alcançar alguma eficácia política.

Muito ainda precisa ser feito para amenizar as lutas dos povos indígenas no Brasil. Os direitos dos povos indígenas, ainda são desrespeitados e ignorados pelas forças do Estado, o que abre margem para grandes indústrias hidrelétricas, de mineração e do agronegócio explorarem terras que não as pertencem, reduzindo ainda mais as possibilidades de moradia e alimentação de milhares de indígenas. 

Para além dos desafios territoriais, os povos indígenas enfrentam, ainda nos dias de hoje, problemas com racismo, preconceito, violação aos direitos das mulheres indígenas, falta de acesso à saúde e serviços públicos, além da alimentação escassa e pobre em nutrientes.

A terra é para os povos indígenas, fonte e mãe da vida. O espaço vital a garantia de sua existência e reprodução ou reconstituição enquanto povos. A terra não é, como na mentalidade capitalista, semente fator econômico-produtivo ou um bem comercial, de propriedade individual, que pode ser adquirido, transferido ou alienado, segundo as leis do mercado. A terra, na visão dos povos indígenas, é mais que um pedaço de chão. Não é apenas base de sustento, mas o lugar territorial onde jazem os ancestrais, onde se reproduz a cultura, a identidade e a organização social própria. Não é a terra que pertence ao homem, é o homem que pertence a terra.

É com os olhos fixos no veredito da História, tradução do julgamento de Deus, que o Brasil deve solucionar o problema dos indígenas. Não como problema de segurança nacional e economia, mas como imperativo da dignidade humana e da honra do povo brasileiro.

A preservação do meio ambiente, é uma condição fundamental para a reprodução da vida, nos moldes tradicionais, nas comunidades indígenas.

Há que se considerar então, que existe relação de respeito entre o índio e a natureza, podendo-se afirmar que o índio, para sua sobrevivência, dentro dos métodos tradicionais, não agride o meio ambiente, como faz o homem que vive na sociedade hegemônica. A terra para o indígena é o seu meio de sobrevivência. Sem ela não há vida.

O Marechal Rondo, em trágica profecia, já em 1916, dizia: "Mais tarde ou mais cedo, conforme lhes soprar o vento dos interesses pessoais, esses proprietários - coram Deum soboles (ante a face de Deus) – expelirão dali os índios que, por uma inversão monstruosa, dos fatos, da razão e da moral, serão considerados e tratados como se fossem eles os intrusos, salteadores e ladrões".

11 respostas para “Até quando vamos brincar de passarinhar indígenas?”

  1. ABENILDO ALVES DE OLIVEIRA disse:

    Mais um ótimo texto Viana, trazendo, entre outras, uma reflexão sobre um tema atual e fatos históricos ainda desconhecidos por alguns. Parabéns meu amigo.
    Você cita o fato dos povos originários viverem em comunhão com a natureza, eu acrescento uma outra questão: esses povos nao têm o hábito de acumular, como nós temos, isso é evolução?

  2. Maria Elisa Alencar disse:

    Os índios ,viviam quietos nas suas terras ,ali habitaram por anos .
    O poder ,a ganância ,virou o que chamo chacina .
    Fizeram da historia ,uma brutalidade sem limites .
    Até hoje presenciamos a falta de respeito . Eram livres … colocaram cabresto,enganaram ,mataram .
    Fizeram o que bem quiseram .
    Eu só posso me entristecer .
    Dos colorido colares ,da penas de todas as cores,restou a vergonhosa história do nosso país .
    Índios seres de Deus .
    Subjugados aos devaneios dos seres desumanos

  3. JOAO BATISTA DANTAS disse:

    Viana, amigo, que belo texto. Muito bem escrito e denunciando todas as barbáries que implementaram nesses últimos anos, com o intuito de eliminar os verdadeiros donos desse país e deixar livre para a predaçao dos que se consideram civilizados. Felizmente parece que vivemos uma outra realidade de valorização dos costumes desses povos irmãos e um pouco de tranquilidade para viverem com bem.entenderem, conforme os seus costumes e cultura secular. Parabéns amigão.

  4. JOÃO WILSON DE LUNA FREIRE disse:

    Vlw Zé! Mais um excelente texto, como sempre aprimorando aquilo que aprendi e vivenciei ao longo do tempo.
    Parabéns Zé!
    Saudações Tricolores!!!
    👍👍👍👏👏👏🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬

  5. David Paulino disse:

    Excelente texto. Nos leva a uma reflexão, nos trás a curiosidade de saber mais e principalmente entender a verdadeira história, até aqui, tão mal contada, dos nossos antepassados.

  6. Gibson Santos disse:

    Brilhante texto Mestre Viana. Com uma abordagem histórica bastante esclarecedora. Parabéns!

    • WASHINGTON SOARES DE ALMEIDA disse:

      Parabéns Viana . Outro belo texto com uma bela reflexão . E por pouco a situação não ficava pior . Graças a Deus que uma mudança para melhorar o que estava ruim .”Todo dia era dia de índio “.

  7. Márcio disse:

    Meu grande escritor, é prazeroso lê seus escritos, pois sempre nos enriquece de conhecimentos necessários…grande abraço. Márcio Oliveira Lima

  8. Vera Lucia Araújo de Oliveira disse:

    Concordo com Maria Elisa, mas muito ainda precisa ser feito para amenizar as lutas, dos povos indígenas do Brasil, problemas com racismo, preconceito , violação aos direitos das mulheres indígenas.

  9. Vera Lucia Araújo de Oliveira disse:

    Concordo com Maria Elisa, embora , muito ainda precisa ser feito para amenizar as lutas dos povos indígenas do Brasil. Os povos enfrentam nos dias de hoje com problemas de racismo, preconceito , violação aos direitos das mulheres indigenas.

  10. Guilherme dos Santos Neto disse:

    Valeu amigo Viana, excelente texto, grande abraço, Guilherme.

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