Pouco tempo depois, que iniciei a publicação dos meus artigos, recebi uma ligação do meu ex-colega de empresa e amigo, o pernambucano Renato Matos. No meio da conversa, ele me sugeriu escrever sobre os invisíveis moradores de rua. Considerando que esse assunto, está em consonância com os artigos que tenho escrito, levantei bandeira acerca do tal assunto.
Bem, vamos refletir um pouco sobre esta triste situação, hoje, quando a sensibilidade é mais aguçada e se fala tanto na fraternidade cristã.
Historicamente, sabe-se da existência de moradores de rua desde o período clássico no Mundo Grego e Império Romano, passando pela idade média e se perpetuando até os dias atuais. Há notícias, inclusive, de uma certa “profissionalização” da situação de rua. Já, na Era Industrial, sabe-se que teria havido repressão generalizada, à difusão de atividades ligadas à vagabundagem e à mendicância.
A desigualdade social, faz parte da construção das sociedades. No Brasil, isso é evidenciado desde o período colonial brasileiro, que foi marcado por intensas desigualdades sociais e raciais, onde um negro africano era considerado inferior e tinha valor somente para ser escravizado. Acentuando-se com a abolição da escravatura em 1888, pela Lei Áurea, na qual sem aparo social nenhum, os escravos (à própria sorte) foram deixados à margem da sociedade, não conseguindo muitas das vezes, trabalhos assalariados, reconhecimento como cidadãos e sendo privados de ir aos lugares. As ruas se tornaram a solução para os seus problemas. E esse contraste, de modo de vida, é visto até hoje que, cerca de 67% dos moradores de rua são negros ou pardos.
Para agravar, entre os séculos XIX e XX, o Brasil viveu o auge de seu período de industrialização. Houve, nessa época, acentuado êxodo rural e grande quantidade da população migrou para as cidades, em busca de melhores oportunidades. No entanto, esse processo não foi organizado e não contou com nenhum planejamento de distribuição populacional. Consequentemente, o processo de urbanização, do que hoje são os grandes centros urbanos, gerou um contraste no tecido social, haja vista que os mais ricos tiveram oportunidade de habitação e bem-estar social, enquanto os mais pobres foram submetidos à marginalização. Como resultado, surgiram favelas e muitos indivíduos em situação de rua.
Reflexo do histórico de exclusão social existente no país, que a cada dia afeta um maior número de pessoas, que não se encontram enquadradas no modelo econômico atual.
Reforçamos ainda, que em razão da precária situação econômica de uma considerável parcela da população brasileira, alguns comportamentos, tidos como criminosos ou contravencionais devem ser excluídos do ordenamento jurídico em razão do seu conteúdo retrógrado e injusto. As contravenções penais de vadiagem e mendicância são dois desses comportamentos. Esses dois tipos penais não são recentes, tendo em vista que eram previstos no Código Criminal do Império de 1830.
O artigo 295 do Código Criminal do Império, descrevia o crime de vadiagem como aquele cometido nas hipóteses em que "não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir, depois de advertida pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente". Enquanto o artigo 296 previa punição para aqueles que andassem mendigando em determinados locais.
Passados bons anos, foi sancionada a Lei 3.688 de 1941- Lei das Contravenções penais, que ficou conhecida como lei contra vadiagem no Brasil. No seu artigo 59, a lei classifica como vadiagem “entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita". A pena pode variar entre 15 dias e três meses. Apesar da Lei da vadiagem ser raramente aplicada, ainda persiste no país. Essa sanção proibia a livre circulação da população de rua, o que evidencia a presença da desigualdade e da exclusão social desde os primórdios do capitalismo.
Interessante, que de acordo com a constituição no Art.5º "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Nessa perspectiva, é fato que a discriminação sofrida por moradores de rua, ainda é um fato excludente dos interesses sociopolíticos.
No livro Homens Invisíveis, o psicólogo Fernando Braga comprova a existência de uma invisibilidade social, a qual atinge, principalmente, pessoas em situação de rua. Nesse sentido, constata-se uma diferença de tratamento entre classes socioeconômicas distintas.
Os moradores de rua são considerados invisíveis, por grande parte da população, as pessoas passam por eles todos os dias e não conseguem enxergar a sua existência. Parece que estas pessoas já fazem parte do cenário urbano. Muitos evitam qualquer contato e passam de largo evitando até olhar à distância, acreditam se tratar de alguém supostamente perigoso, demente, um indigente que pode nos atacar, nos ferir ou mesmo nos matar. Esta, em geral, é a reação da sociedade diante de um ser humano que por algum motivo se encontra na rua abandonado e, na maioria das vezes, sem nenhuma esperança. Indivíduos que perdem a condição de cidadãos à medida que se dissipam as simbologias que os retratam como tal em adjetivos pejorativos – mendigo, vagabundo, etc.
É importante ressaltar, que essa invisibilidade social, acaba tornando os moradores de rua pessoas sem oportunidades, no que tange ao mercado de trabalho. Tendo como consequência o aumento das mazelas sociais.
Além de não possuírem as condições básicas de sobrevivência (comida, água, local para dormir, etc), também estão suscetíveis à violência, maus tratos e, principalmente, ao desprezo e abandono.
O aumento exponencial no número de moradores de rua, é um retrato da desigualdade em nosso país. O número de pessoas em situação de rua no Brasil cresceu 140% entre 2012 e março de 2020, chegando a quase 222 mil pessoas. Maior parte da população é masculina.
A população em situação de rua se caracteriza por ser um grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta, vínculos interrompidos ou fragilizados e falta de habitação convencional regular, sendo compelidas a utilizar a rua como espaço de moradia e sustento, por caráter temporário ou de forma permanente.
Os motivos que levam uma pessoa a morar na rua são vários, como o desemprego, o abandono familiar ou até falta da família, a situação econômica, o desajuste social, violência, perda da autoestima, problemas psicológicos e, muitas vezes, o uso abusivo de drogas, como o álcool e o crack.
A população em situação de rua é subdividida em três grupos, nos quais ocorre a distinção conforme a permanência na rua: As pessoas que ficam na rua – configuram uma situação circunstancial que reflete a precariedade da vida, pelo desemprego ou por estarem chegando na cidade em busca de emprego, de tratamento de saúde ou de parentes. Nesses casos, em razão do medo da violência e da própria condição vulnerável em que se encontram, costumam passar a noite em rodoviárias, albergues, ou locais públicos de movimento. As pessoas que estão na rua - são aquelas que já não consideram a rua tão ameaçadora e, em razão disso, passam a estabelecer relações com as pessoas que vivem na ou da rua, assumindo como estratégia de sobrevivência a realização de pequenas tarefas, com algum rendimento. É o caso dos guardadores de carro, descarregadores de carga, catadores de papéis ou latinhas. As pessoas que são da rua e já utilizam esses lugares como moradia há um bom tempo e de certo modo, se acomodaram com tal situação, em consequência do uso de drogas e da má alimentação, degradam sua saúde. O álcool e as drogas são substâncias presentes nesses grupos, pois servem como alternativa para minimizar a fome e o frio.
As pessoas que vivem nas ruas viram-se como podem. Dormem em “mocôs” (imóveis abandonados), próximas a órgãos públicos, em rodoviárias ou estações de trem, montam barracas em praças ou áreas verdes, abrigam-se embaixo de pontes. Dormem geralmente em grupos, em razão dos riscos que enfrentam pela violência de que são alvos, mas também há as que se mantêm sozinhas.
É possível, por intermédio da linguagem simples e coloquial do poema, "Tinha uma pedra no meio do caminho" de Carlos Drummond de Andrade fazer uma analogia a respeito da população em situação de rua no Brasil. Dentro do contexto do tema, a exclusão sofrida pelos residentes de rua, torna-se uma pedra no meio do caminho, para a melhoria das condições de vida, desta parcela da população brasileira. A problemática atua e repercute no cotidiano dos brasileiros como um verdadeiro obstáculo social a ser superado. Contudo, percalços como a inércia governamental e a falta de acesso à educação dificultam o sobrepujar dessa adversidade.
Da mesma forma, o poema de Manuel Bandeira “O Bicho” na passagem “não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem." Torna-se possível imaginar a situação dos moradores de rua no Brasil, que são animalizados, por falta de adjetivos, que caracterizem tamanha falta de dignidade em suas condições de vida. Um bicho misterioso e tenebroso, comendo comida do lixo, depois percebe que o ser, na realidade, era um Ser Humano. Paralelo à realidade, muitos moradores de rua, como o personagem do poema de Bandeira, são vistos socialmente como seres estranhos, ou às vezes nem são vistos, se tornam parte do cenário urbano, isto é, deixam de ser enxergados como seres humanos, devido ao estado em que se encontram. Portanto, os moradores de rua passam por um processo de desumanização, devido à forma preconceituosa pela qual são vistos pela óptica social.
O importante ao se analisar essa realidade encontrada no Brasil, é lembrar que essas pessoas fazem parte de nossa sociedade, que todos possuem os mesmos direitos perante as leis. No Art.1º da Constituição Brasileira é citado os fundamentos do Estado Democrático de Direito e entre eles está presente aspectos como a cidadania e a dignidade da pessoa humana. O Artigo 3º afirma que erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais são os objetivos da República Federativa do Brasil. O artigo 6º garante a todos os indivíduos, o direito à moradia, assistência aos desamparados e ao bem-estar social. No entanto, trazendo para o contexto da população de rua no Brasil, mostra-se que esses direitos, não estão corretamente sendo praticados.
De acordo com o jornalista Gilberto Dimenstein, a terminologia "Cidadão de papel" designa os direitos previsto na legislação e servem apenas para criar um estado de bem-estar social, todavia o Estado não faz quase nada para alterar o cenário na realidade.
Em 2014, com a Copa do Mundo realizada no Brasil, o Governo estipulou um plano para remover a população de rua, nas principais cidades, onde os jogos seriam realizados. Apesar da aparente preocupação, o projeto não logrou êxito e reincidiu a mesma situação decadente. Na realidade, o plano não continha medidas para buscar resolver o problema mas "esconder os desfavorecidos."
Enfim, não basta o estado criar programas sociais, é preciso acompanhar, criar métodos quantitativo e qualitativo, a fim de consertar seus erros e propor melhorias para atingir à eficácia dos programas. É necessário a criação de políticas públicas que garantam a reinserção destas pessoas como cidadãos.
Sabemos que a questão é muito complexa, mas é preciso pensar em caminhos preventivos, em soluções que envolvam direito à moradia e geração de renda. Cuidar das pessoas, antes delas estarem em condição de rua, é muito mais eficiente e barato do que cuidar delas depois desta situação consolidada, quando o resgate social fica mais difícil a cada dia que passam na rua.
O pior, é que o desinteresse do Estado, influencia diretamente no comportamento da sociedade, haja vista que os moradores de rua são tratados, ora com compaixão, ora com repressão, preconceito, indiferença e violência.
Mas, não podemos deixar de exaltar e agradecer, as diversas Organizações Não Governamentais, às (ONGs), às Instituições Religiosas, Maçonaria, Lions Clube, Rotary Club e Sociedades Espíritas, nos serviços de amparo à essas pessoas, atuando na distribuição de alimentos, roupas, cobertores, etc.
Temos também pessoas que se unem em grupos e sempre saem a procura destes moradores, levando-lhes roupas, alimentos e sobretudo, calor humano. São os "bons samaritanos" modernos, pessoas abnegadas que desempenham tão linda missão.
No caso de instituições Religiosas, na cidade de Natal-RN, queremos dar dois exemplos. Primeiro o trabalho realizado pela Pastoral Ronda Fraterna que faz parte da Paróquia de Nossa Senhora das Graças e Santa Teresinha, localizada no Bairro do Tirol. Com objetivo e atender aos irmão necessitados, realiza distribuição semanal de sopa, pão e leite achocolatado, para diversas famílias cadastradas nas comunidades. Construção e reformas de casas, e outras atividades. E o segundo exemplo, é o trabalho feito pela Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, onde através do trabalho denominado “A Ronda Paz e Bem”, ocorre a distribuição de sopa e roupas para os moradores de rua.
Durante meu trabalho de pesquisa para escrever esse artigo, conversei com um ex-colega de trabalho e amigo George Adriano, que eu tinha conhecimento que fazia parte desse grupo de “samaritanos” do Ronda Paz e Bem. Ele me contou, que sempre observava que a grande maioria dos moradores de rua, que participavam da distribuição de sopa com a ronda Paz e Bem do convento Santo Antônio, não tinham acesso a um banho. Foi aí que surgiu a ideia da construção de um trailler banheiro. A ideia foi colocada em prática e em 15 de dezembro de 2016, ocorreu o ato inaugural do primeiro “Banho Solidário”. Repetindo as palavras do amigo George Adriano: “Foi assim que nasceu a vontade de fazer algo mais para os nossos irmãos em situação de rua."
Nosso exemplo de solidariedade é Jesus Cristo. Viveu uma trajetória de dedicação e cuidado com os mais pobres. Desde o seu nascimento, teve uma vida simples. Nasceu em um estábulo entre animais, cresceu em uma família humilde e foi apresentado no Templo, com a oferta dos pobres. Com o passar dos anos, mostrou-se próximo daqueles que eram discriminados e desprezados da sociedade e fez dessa a sua missão de vida.
Jesus não apenas deixou o exemplo da solidariedade, como também nos indicou que esse é o caminho a ser trilhado, para fazer a vontade de Deus e caminhar na santidade. Dessa forma, quando olhamos para a sua história, devemos nos inspirar no tamanho do seu amor pelos mais necessitados. O espaço que o pobre tem no coração de Cristo é o que também devemos manter em nossos corações.
“Se o penhor dessa igualdade. Conseguimos conquistar com braço forte”. Esse trecho do hino nacional brasileiro expõe uma visão idealizada de uma nação justa e igualitária.
Entretanto, ao observar a situação dos moradores de rua, no Brasil, percebe-se que essa noção patriota é constatada apenas em teoria e não desejavelmente na prática, e a problemática persiste intrinsecamente ligada à realidade do país.
“Triste mundo este que cobre os vestidos e despe os nus”. A frase, do dramaturgo e poeta espanhol Pedro Calderón de la Barca, exprime a ideia de que quem pouco tem terá menos ainda, uma vez que dele será tirado para dar aos que muitos possuem.