DEU ZEBRA

Uma das características dos brasileiros que mais chamam atenção no exterior é a “alegria”. Esta é, sem dúvida, a marca dos brasileiros em qualquer lugar do mundo. É impossível não relacionar o brasileiro a um povo feliz, acolhedor e brincalhão.

Podemos relacionar esse lado brincalhão do brasileiro, com seu senso de humor. 

O senso de humor, é uma característica fundamental na vida e na manutenção dos relacionamentos interpessoais, é uma ferramenta eficaz para superar qualquer incômodo ou vergonha, para descontrair em situações tensas e quebrar o gelo. E se faz ainda mais necessária nos momentos de dificuldades, pois ajuda na superação, na maneira de encarar os problemas e de encontrar soluções. Todavia, o humor tem uma função defensiva, sendo fruto de uma ação do superego sobre o ego oprimido, a fim de protegê-lo do sofrimento. De acordo com Sigmund Freud, o ego recusa a realidade do mundo externo e tenta obter prazer afirmando-se contra a “crueldade das circunstâncias reais”. Nesse sentido, postula Freud, o humor é liberador e enobrecedor do ego. É um mecanismo subjetivo que visa anular o sofrimento e a dor, em favor do princípio do prazer. Situações que despertam sentimento de tristeza, revolta, injustiça, impotência, decepção etc. – e que normalmente independem da ação do sujeito para contorná-las.

Dizem que “brasileiro não perde a chance de fazer piada”. E isso ficou ainda mais evidente com o uso da internet. Política, economia, futebol, vida privada de famosos, Enem, morte, qualquer que seja o assunto, o humor vem recobrir sentimentos que se despertam e que diante dos quais, muitas vezes, não há o que fazer. É uma resposta àquilo que afeta, de alguma forma, o ser do sujeito.

Não podemos generalizar, mas são poucos os que levam as coisas a sério neste país, a maioria é adepta da brincadeira, do deixa como está para ver como é que fica, do empurrando com a barriga, do criar dificuldade para vender facilidades, do jeitinho brasileiro, do levar vantagem em tudo, do se Deus quiser um dia vai melhorar, etc. etc.

Dentro desse contexto, tem uma antiga piada que demonstra a paixão que muitos brasileiros tiveram ou ainda têm, pelo jogo do bicho, assim contavam: Numa pequena cidade do interior havia um pequeno convento onde viviam três freiras: A sisuda madre superiora e duas irmãs. As duas irmãs mais novas, tinham lá seu pecadilho: gostavam de um joguinho de azar. Tinha na cidade uma banca de jogo do bicho. As irmãs as escondidas da madre, quando arrumavam um dinheirinho jogavam no bicho.

Um dia, a irmã Dorotéia teve um sonho inspirador, e jogou todo seu dinheiro no bicho. A banca de jogo ficava ao lado do convento. A tardinha na hora da Ave Maria, elas estavam na capela cantando e rezando. Da janela da capela dava para ver a tabuleta onde ficava o resultado do jogo. A irmã Dorotéia a todo instante ia na janela para ver o número ganhador. A Madre superiora perguntou o motivo da inquietação dela. Ela através de evasivas, reclamou do calor, que seus joelhos estavam doendo. Como ela era baixinha não conseguia ver direito a tabuleta.

Era dia de Nossa Senhora de Fátima, elas estavam cantando aquela velha cantiga:

"A treze de maio, na cova da Iria. No céu aparece, a Virgem Maria... Ave, ave, ave Maria"...

A Madre superiora estava um pouco surda, ela ouvia, mas não entendia bem as palavras.

E como a irmã Chiquinha era alta e esguia como um bambu e estava perto da janela, a irmã Dorotéia cantou no mesmo tom: Irmã Chiquinha, você que é mais alta, mais alta que eu, me conta agora, que bicho que deu. A irmã Chiquinha espichou o pescoço que nem uma girafa, viu o resultado na tabuleta e no mesmo tom, também cantou: Ave, ave, avestruz. Ave, ave, avestruz!

Essa piada serve também para lembrar de outra característica do brasileiro que todos nós muito bem conhecemos, inclusive os estrangeiros. Estamos falando do chamado “jeitinho brasileiro”. Podemos denominar de criatividade.

Alguns produtos e serviços brasileiros obtêm sucesso no mercado justamente por possuírem densidade cultural, que agregam ainda mais valor aos produtos. Pode-se perceber que o aspecto citado acima está presente nos segmentos de moda, turismo, artesanato, agronegócio e, principalmente, em manifestações culturais como pintura, música e festas típicas/temáticas, como o Carnaval.

Retornando a piada das freiras, e claro, a paixão das mesmas pelo jogo do bicho, assim como a caipirinha, o samba e o Carnaval, o jogo do bicho é uma invenção brasileiríssima.

O jogo do bicho foi criado em 03 de julho de 1892, pelo Barão João Batista Drummond, como um meio de aumentar a arrecadação financeira do jardim zoológico mantido por ele.

O Barão de Drummond criou o Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, tanto com a finalidade recreativa, como também didática, por essa razão foi considerado uma iniciativa de utilidade pública, recebendo, aliás, ajuda financeira do Império no valor de 10 contos de réis por ano. Ajuda essa que durou até a proclamação da República, quando esse auxílio foi suspenso.

Por alguns anos, o Barão manteve o Zoológico com seus próprios recursos. Porém, com dificuldades financeiras para alimentar os animais e pagar os trabalhadores do jardim zoológico, quase encerrou as atividades no empreendimento.

Foi nesse momento que Barão João Batista Drummond, teve uma ideia para atrair visitantes para seu zoológico em Vila Isabel, zona norte do Rio. O local tinha espécies exóticas e belas vistas da cidade, mas faltava público. Entre as novas sugestões de entretenimento para o local, uma se destacou: uma rifa.

Pela manhã, o barão escolhia um animal em uma lista de 25 bichos e colocava sua imagem numa caixa de madeira na entrada no zoo. Quem participava ganhava um tíquete com uma estampa de algum desses 25 animais.

Ao final do dia o barão abria a caixa e mostrava a figura. O vencedor levava 20 vezes o valor da entrada - o que já superava, por exemplo, a renda mensal de um carpinteiro da época. A partir de 1894, cada um podia comprar quantos bilhetes quisesse.

Daquele ano em diante, essa loteria deixou de ser um simples sorteio e se transformou em um jogo de azar. A “loteria” foi batizada de jogo de bicho.

Logo se estendeu para além do zoológico, por toda a cidade do Rio de Janeiro, e, depois, por diversas regiões do Brasil. O Rio de Janeiro transformou-se na "capital do jogo do bicho". Bilhetes começaram a ser vendidos, não apenas no zoológico, mas em lojas pela cidade.

Todavia, no final do século 19, pelo bem dos costumes e da moralidade, essa diversão passou a ser entendida como jogo de azar, e, as autoridades começaram a reprimir a prática. Mas a “brincadeira” só se tornou definitivamente ilegal em 1932, no governo de Getúlio Vargas, que através do Decreto Decreto-Lei nº 21.143, pela primeira vez o jogo do bicho aparece especificamente como contravenção penal.

Em 30 de abril de 1946, na promulgação do Decreto-Lei nº 9.215, que, embora não tratasse diretamente sobre o jogo do bicho, caçou todas as licenças concedidas para casas de jogos no Brasil. O que mais chama atenção é seu preâmbulo, que afirmava:

O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição, e considerando que a repressão aos jogos de azar é um imperativo da consciência universal; Considerando que a legislação penal de todos os povos cultos contém preceitos tendentes a esse fim; Considerando que a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração e jogos de azar; [...]

Mais uma vez, a moralidade é invocada para justificar a proibição dos jogos de azar no Brasil.

Muitos destacam, no entanto, a forte influência que a esposa do presidente Eurico Gaspar Dutra, a primeira-dama Carmela Teles Leite Dutra, teria exercido na proibição, motivada por sua forte devoção à Igreja Católica.

Em 1951, Rachel de Queiroz escreveu um artigo intitulado “O jogo do bicho”, em que levanta a questão da possibilidade de regulamentação, já que outros divertimentos mais danosos, ao seu ver, como o álcool eram permitidos.

A ligação do jogo do bicho com o carnaval começou por volta dos anos 1930, através de Natal da Portela. No quintal de sua casa foi fundado o bloco carnavalesco "Vai como pode", que se transformaria na Portela.  Após perder o braço em um acidente nos trilhos e, como não arrumava emprego, virou anotador do jogo do bicho. Em pouco tempo passou de anotador a dono de banca. Alguns anos depois, resolveu investir dinheiro na escola de coração. Surgia a figura do bicheiro patrono e a Portela se tornou a maior vencedora de todos os tempos. Depois, vieram vários outros: Castor de Andrade da Mocidade, Anísio da Beija-Flor e por aí vai. Como já dizia a canção de Dorival Caymmi: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é”, e nesse caso, quem gosta aparentemente também não.

Até hoje, o nome mais conhecido no universo do jogo do bicho é Castor de Andrade. Além de controlar o jogo do bicho na cidade do Rio de Janeiro, o “doutor Castor” financiava escolas de samba, ajudando a fundar em 1984 a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Também foi o maior patrocinador e dirigente do Bangu Atlético Clube.

No futebol, o jogo do bicho chegou paralelamente ao profissionalismo. Até 1910, o esporte era amador e, à medida que a popularidade foi crescendo, a rivalidade e a vontade de investir nos times aumentava tanto quanto.

Para aumentar o empenho dos jogadores, os sócios dos clubes ofereciam recompensas em dinheiro em caso de vitória. Para que não fosse institucionalizado o "prêmio", aqueles atletas amadores diziam que a quantia que entrava havia sido ganha no "jogo do bicho".

Na década de 60, as pessoas envolvidas com o jogo do bicho representavam cerca de um por cento da força de trabalho total do Brasil, e só na cidade do Rio de Janeiro, 50 mil pessoas trabalhavam com a contravenção entre as décadas de 1980 e 1990.

Vale destacar que nas regiões Norte e Nordeste, onde os problemas econômicos e sociais sempre foram latentes, a prática do jogo do bicho tomou proporções ainda maiores, e considerando os altos números de desemprego, foi nesta atividade que muitos procuraram manter a sobrevivência de suas famílias.

O cientista político dizem que as parcerias criminosas no Brasil, ganharam fôlego no período regime militar e se mantiveram no atual período democrático. Políticos, por exemplo, se beneficiam de doações via caixa 2 e do acesso dos bicheiros a comunidades pobres.

A verdade é que a repressão ao jogo do bicho não foi eficaz durante os anos do Regime Militar. Não interessava irritar ou acabar com a chamada “diversão” das classes menos favorecidas.

O historiador Luiz Antônio Silva, do Rio de Janeiro, deixa claro: “o jogo do bicho sempre foi aceito porque, apesar de juridicamente ilícito, era moralmente aceito porque não fazia mal a ninguém. Contudo, o tráfico de drogas jamais terá a mesma visão”.

Corre uma história de que durante o regime militar, o presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, numa reunião da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste em Recife, teria cobrado do então governador João Agripino a extinção do jogo na Paraíba. Agripino teria respondido ao então presidente: "acabo com o jogo do bicho na hora em que o senhor arranjar emprego para os milhares de paraibanos que ganham a vida como cambistas".

Câmara Cascudo, no seu "Dicionário do folclore brasileiro", distinguia o jogo como sendo "invencível" e que a sua repressão apenas ampliava sua difusão por todo o país. "Vício irresistível", escreveu o folclorista: "(...) contra ele, a repressão policial apenas multiplica a clandestinidade. O jogo do bicho é invencível. Está, como dizem os viciados, na massa do sangue".

Um aspecto muito curioso é o fato de o Jogo do Bicho ser ilegal no Brasil, país onde nasceu, e isto apesar de toda sua popularidade entre o povo. Não seria exagero dizer que ele faz parte da cultura popular do país. Sempre destacou-se pelo lado democrático, seja rico ou seja pobre. Quem nunca interpretou sonhos, placas de carro e números, para fazer uma fezinha?

O jogo do bicho cresceu à semelhança das organizações mafiosas estrangeiras, por meio de estruturas familiares. Os grandes banqueiros do bicho, que a partir dos anos 70 passaram a habitar e operar a partir de “fortalezas”, criaram uma comissão dirigente para contornar disputas, dividir territórios e racionalizar as suas operações criminosas.

Segundo o Ministério Público do Rio (MP), os banqueiros do jogo do bicho começaram a operar com o tráfico de drogas em 1975. Nessa época, eles teriam se reunido em um bar na Barra da Tijuca (zona sul do Rio) e tomado duas decisões que mudariam a história da contravenção no Estado. Nessa reunião, os bicheiros decidiram permitir que a estrutura do jogo fosse usada para a distribuição de cocaína.

Atualmente, venda de droga e jogo não se misturam no morro. Nos morros cariocas, "bocas" de venda de drogas e pontos de jogo do bicho funcionam em locais diferentes.
A separação é uma estratégia de traficantes e bicheiros. Eles acreditam que, distanciados, atrapalham a ação policial.

A história da humanidade está ligada à história do jogo, pois parece que não importa o quão longe você vá, há sinais de que onde grupos de pessoas se reuniram, o jogo certamente estava ocorrendo. Infelizmente a tolerância social ao jogo serve como combustível para que o jogo ainda sobreviva depois de tanto tempo.

Atualmente, apesar de ainda existir o jogo do bicho, onde o bloco de papel foi substituído pelo computador, temos sites que nos permitem fazer apostas online e jogar em diversas modalidades esportivas e jogos de cassino. Entre as modalidades presentes no site estão basquete, futebol, cassino, pôquer, beisebol, bilhar, corridas de cavalos e muito mais. Vale esclarecer que, apesar de apostas serem consideradas jogos de azar, e esta modalidade ser proibida no Brasil, as apostas esportivas não são citadas na legislação brasileira.

Infelizmente, o jogo é um dos vícios que mais pode causar prejuízo aos humanos pois vem junto com a ilusão de dinheiro fácil e pode levar rapidamente um indivíduo à ruína financeira. Um assunto que tem andado extremamente popular nos dias de hoje é o vício em jogos eletrônicos e de azar. Apesar de ser um tema extremamente atual, se trata de um problema antigo, que diversas gerações enfrentam diariamente, cada dia mais.

Os jogos de azar são viciantes, justamente porque despertam prazer, adrenalina e, quando se ganha, alívio e sensação de vitória. Por outro lado, quando se perde, o indivíduo fica tentado a jogar mais algumas rodadas para mudar a sua sorte.

A compulsão pode levar a pessoa viciada a surrupiar os recursos financeiros dos seus entes queridos para alimentar o vício.

Bem, fico imaginando o que no outro mundo deva estar pensando o Barão Drummond, acerca da repercussão que sua invenção teve na sociedade brasileira nesses 131 anos de criação da “Loteria dos Bichos”, cuja ideia era apenas aumentar a arrecadação financeira do jardim zoológico mantido por ele.

Talvez ele pense: “Deu Zebra”. Não no aspecto cultural mas principalmente no fortalecimento das organizações criminosas. Interessante que a zebra não está entre os animais do jogo do bicho.

Concluímos com a música “Jogo Numerado”: O bicho homem é um bicho dominado. Pela mulher vive sempre apaixonado. Joguei um dado e fui sorteado. Caiu número um, avestruz tá decorado. Dois é a águia que tem o bico revirado. Três é o burro, pelo homem domesticado. Quatro é a borboleta que na selva foi criada.  Cinco é o cachorro, pelo homem estimado. Seis é a cabra que tem seu leite apreciado. Sete é o carneiro que tem o choro antecipado. Oito é o camelo que tem seu lombo encalumado. Nove é a cobra, um bicho amaldiçoado. Dez é o coelho que é um bicho desconfiado. Onze é o cavalo, para o homem andar montado. Doze é o elefante, com a tromba enrolada. Treze é o galo, chefe do terreiro, rei coroado. Quatorze é o gato, que pelo rato é respeitado. Quinze é o jacaré que na lagoa foi criado. Dezesseis é o leão, que é o rei do seu reinado. Dezessete é o macaco, bicho cabuloso, porém engraçado. Dezoito é o porco que só engorda bem tratado. Dezenove é o pavão, com suas penas invejadas. Vinte é o peru que é um bicho aperreado. Vinte e um é o touro que não gosta de gramado. Vinte e dois é o tigre, um bicho todo malhado. Vinte e três é o urso, um bicho mal encarado. Vinte e quatro é o veado que anda sempre apressado. Vinte e cinco é a vaca e o jogo tá terminado.