24/04/2024

O CANGAÇO CONTINUA

De vez enquanto escutamos, principalmente dos idosos, a seguinte frase: “Não há mal que não traga um bem”. O escritor Machado de Assis, na sua genialidade literária, fez um pequeno complemento, que na minha opinião foi perfeita: “Não há mal que não traga um pouco de bem, e por isso é que o mal é útil, muitas vez indispensável, algumas vezes delicioso”. Este pensamento me faz lembrar de duas vezes que minha residência foi assaltada quando morava no Bairro de Lagoa Nova, na cidade Natal-RN, na década de 90. Todas as duas vezes foi durante a semana Santa quando viajávamos para Paraíba. Na segunda vez, quando estava na delegacia para abrir um Boletim de Ocorrência, o delegado me deu o seguinte conselho: “Não viaje mais na Semana Santa”. Na oportunidade, fiquei muito chateado com aquele “conselho”, mas depois de uma profunda reflexão, eu e minha esposa tomamos a decisão de não mais viajarmos. Somos cristãos, e a Semana Santa é um período sagrado. É a ocasião em que é celebrada a paixão de Cristo, sua morte e ressurreição.

Ela deve ser um tempo de recolhimento, interiorização, oração e abertura do coração. É a hora de reconstruir a própria fé e abrir a mente e o coração para Deus. Enfim, significa fazer uma parada para reflexão e reconstrução da espiritualidade, essencial para o equilíbrio emocional e a segurança no caminho natural da história de vida com mais objetividade e firmeza.

É muito triste lembrar, quando falamos sobre assaltos, bandidagem, que Jesus Cristo morreu como um criminoso, com verdadeiros criminosos dos dois lados.  E o pior ainda, ter sido trazido para diante da multidão numa tentativa covarde de Pilatos de se livrar de um inocente. Pilatos sabia quem era o criminoso chamado Barrabás, o qual ele mesmo mandou prender por crimes hediondos. O Evangelista Mateus empregou o título “muito conhecido” para referenciar Barrabás (Mt 27:16), deixando claro que ele era alguém com certa fama entre o povo, talvez até reputado como uma espécie de herói, principalmente se seus delitos fossem por motivação nacionalista. Seja como for, as referências bíblicas descrevem Barrabás como sendo um salteador, perturbador da ordem pública e homicida. Porém acabou sendo solto por Pilatos a pedido da multidão.

Infelizmente os “salteadores” sempre fizeram parte da história da humanidade. Quem não se lembra da lenda de Robin Hood, o conhecido príncipe dos ladrões? Essa personagem criada no Reino Unido no século XIII, conhecido por ser hábil no arco e flecha, trajava verde e vivia escondido nos bosques de Sherwood, em Nottingham, se tornou o modelo do bandido justiceiro, que redistribuía a riqueza roubando dos ricos para dar aos mais pobres. No entanto, trata-se de uma versão fictícia do personagem, muito distante da realidade histórica de bandidos e foras-da-lei medievais.

Dentro desse contexto, podemos citar os “piratas”. Existem desde que o homem passou a transportar bens e mercadorias usando rios e mares. Os registros mais antigos contam que, por volta do século V antes de Cristo, no Golfo Pérsico (região do Oriente Médio), ladrões já investiam contra barcos de comerciantes. A pirataria ganhou força entre os séculos VXI e XVIII, quando houve um aumento importante do transporte de riquezas pelo mar. Países europeus, como Portugal e Espanha, encararam os oceanos, explorando novas terras e buscando recursos naturais e minerais.

Uma curiosidade da vida dos piratas é como viviam em navios, manter um animal de estimação grande, como um cachorro ou um macaco, era difícil. Uma opção muito mais sensata e estratégica era um papagaio.

Infelizmente, em pleno século XXI, os piratas “modernos” ainda atacam e roubam embarcações em muitos lugares. As estatísticas indicam um crescimento dessa modalidade de roubo em alguns pontos do planeta. No Brasil, os crimes de pirataria marítima são menos frequentes e os piratas menos audaciosos. A baía de Santos é considerada a área de maior perigo, de acordo com os boletins transmitidos aos navegadores europeus.

E os salteadores no Brasil? Quando começaram a existir? É muito comum escutar pessoas relacionando as mazelas do Brasil de hoje ao tipo de colonização que o país teve. Dizem uns que, colonizados por bandidos, assaltantes, enfim, pela escória portuguesa que veio aportar nas terras do pau-brasil, não poderia, mesmo, ser outro o resultado. Os historiadores do passado perpetuaram a ideia que o Brasil recebeu mais criminosos do que qualquer outro segmento da sociedade portuguesa nos seus primeiros tempos. Nos últimas décadas, documentos descobertos e estudados, tornou público novas facetas da colonização brasileira. A colonização brasileira levada a cabo por degredados é uma lenda já desfeita. O degredado era banido de sua terra de origem (no caso, a Metrópole portuguesa) por ter cometido algum tipo de crime. Os crimes cometidos pelos degredados variavam desde crimes comuns, como roubo, até crimes de ordem religiosa, condenados pelo Tribunal do Santo Ofício, como feitiçaria, rituais de bruxaria etc. A maioria dos degredados que chegaram ao Brasil foram condenados pela Santa Inquisição e as autoridades portuguesas se valiam disso para promover a exclusão social.

O historiador e professor do Departamento de História da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) Geraldo Pieroni relata no seu livro “Os excluídos do reino” (2000) que mais de 50% das pessoas degredadas para o Brasil eram mulheres, acusadas, quase sempre, por feitiçaria, blasfêmia e bigamia. Devemos relembrar que os dois maiores poetas portugueses, Camões e Bocage, sofreram a pena de degredo na Índia.

No Brasil, as histórias mais conhecidas sobre banditismo organizado, são sobre Lampião e seu bando de cangaceiros. Porém, antes de falar sobre o Cangaço, vamos comentar um pouco sobre o Coronelismo, tendo em vista que foi durante o período do coronelismo, surgiu o fenômeno marcante na história brasileira: o Cangaço.

O Coronelismo tem suas raízes nas primeiras décadas do Brasil independente, durante o Período Regencial (1831-1842), nascendo para conter as revoltas e motins pelo país e assim proteger a postura centralizadora do governo.

O coronelismo estava intimamente ligado ao sistema latifundiário brasileiro, visto que os coronéis eram proprietários de grandes extensões de terra, ainda que fossem das capitais. Terras onde exerciam autoridade absoluta sobre os trabalhadores rurais, estabelecendo relações de subserviência e dependência.

Foi um sistema político e social que moldou profundamente a história do Brasil de forma extremamente exploratória e corrupta. Como diz o advogado e historiador Victor Nunes Leal, em sua obra “Coronelismo, Enxada e Voto”, os coronéis foram senhores do bem e do mal.

Quanto ao Cangaço, podemos afirmar que é um dos fenômenos mais controversos da história nacional, geralmente categorizado na seguinte dualidade: ou criminosos assassinos ou heróis populares.

Os cangaceiros, como eram conhecidos os integrantes do cangaço, eram ladrões e assassinos que andavam bastante armados, os quais se dividiam em três formas de banditismo: o de vingança, o puro e simples e o de justiça social.

O Cangaço foi um movimento criminoso que aconteceu na região Nordeste durante o período que abrangeu o final do século XIX e a metade do século XX que desafiaram a autoridade do Estado e principalmente a dos coronéis locais. Interessante que muitos dos jagunços (pistoleiros) dos próprios coronéis se bandearam para a vida de cangaceiros. Alguns cangaceiros vendiam seus serviços para coronéis, perseguindo e matando seus opositores em troca de dinheiro.

O primeiro cangaceiro de repercussão nacional foi Jesuíno Brilhante, que, a partir de 1871, formou um poderoso grupo que circulou pelo Sertão, atacando principalmente fazendas dos grandes coronéis da região. Todavia, o bando de cangaceiros mais famoso foi o comandado por Lampião. Foi por volta de 1918 que Virgulino se tornou cangaceiro para vingar de um conflito familiar.

Importante ressaltar, que desde a época do cangaço, a opinião pública sobre o movimento se dividia. Para alguns, eles eram heróis praticando o que é chamado de banditismo social, para outros, eles eram criminosos cruéis que agiam com violência, destruíam cidades, cometiam estupros e não respeitavam as leis. Não deveriam, portanto, ser alçados à condição de heróis e seus atos violentos não deveriam ser relativizados.

Independente de pensamentos, a vida dos cangaceiros influenciou em diversas manifestações artísticas no Brasil, basta ver o modo de vestir de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. Quem nunca cantou a música "Olê mulher rendeira? Segundo o Padre Frederico Bezerra Maciel, regionalista pernambucano e biógrafo de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, o cangaceiro teria escrito os versos da versão original desta canção. A ele se acrescenta Câmara Cascudo, segundo o qual Lampião teria escrito a letra em homenagem ao aniversário de sua avó Dona Maria Jocosa Vieria Lopes ("Tia Jacosa") que era uma rendeira.

No mundo atual, a criminalidade assumiu contornos diversos, e hoje é um mal que todos os países, tentam combater, e que infelizmente na maioria das vezes sem sucesso. 

Na atualidade ocorre no Brasil um fenômeno social conhecido como Neocangaço que são grupos de criminosos fortemente armados dominam pequenas e médias cidades, assaltando instituições financeiras. Entendo que não dá pra traçar uma analogia entre o cangaço e essas ações empreendidas atualmente. Claro que razões sociais estavam por trás do cangaço, assim como também estão por trás do crime organizado moderno, mas as situações históricas, lá atrás e agora, são completamente diferentes.

Hoje as organizações criminosas estão envolvidas com bingos, cassinos, lenocínio, narcotráfico, lavagem de dinheiro e jogos ilegais. Por exemplo, o Comando Vermelho (C.V.), tem atuação fortemente com o tráfico de armas, roubos, narcotráfico, entre outros. O Primeiro Comando da Capital (PCC), que é formado por todos os tipos de criminosos, com atuação vasta, que vai desde a proteção, até a assassinatos encomendados, sequestros, roubos, etc.

Da mesma forma que ao falarmos do Coronelismo temos que falar do Cangaço, quando citamos as organizações criminosas, tais como as ligadas ao tráfico de droga, vem em nossa mente as milícias brasileiras.

É provável que as milícias existam desde muitos séculos atrás. São diversos os relatos de grupos de mercenários, revolucionários e grupos armados que atuavam na sociedade, como a revolução de Espártaco e a milícia do senador romano Catilina.

A registros que no Brasil as atividades milicianas começaram na década de 60, no bairro Rio das Pedras, na cidade do Rio de Janeiro. Os objetivos inicial dos milicianos eram: lutar contra os narcotraficantes; impedir o uso e tráfico de drogas; ganhar dinheiro através do serviço de segurança privada. As milícias avançaram para as organizações criminosas que conhecemos hoje em dia, quando policiais enxergaram a oportunidade de exploração de atividades econômicas nas comunidades carentes, principalmente após a expulsão dos traficantes.

A diferença original entre milicianos e traficantes era simples: os milicianos cobravam para oferecer segurança; já os traficantes, por sua vez, vendiam drogas ilegais e dominavam territórios das favelas, tornando-se o governo desses locais. Contudo, atualmente a diferença entre os dois grupos tornou-se inexistente ou complexa.

Juntando a toda essa forma de bandidagem, que já existiram e continuam a existir, hoje em dia o banditismo organizado está no alto da cúpula política e econômica. Os chamados bandidos de colarinho branco. Na realidade sempre existiram, apenas hoje são mais sofisticados e manipuladores. Já é constatado que os criminosos do colarinho branco não estão presentes apenas no âmbito político e econômico do país. Profissionais de todas as áreas podem estar sujeitas a cometerem o crime de colarinho branco. O que irá diferenciar será os que decidirão enveredar pelo caminho do crime em busca de vantagens financeiras e pessoais muitas vezes valendo-se do seu poder econômico, intelectual e social. Infelizmente a prática criminosa não acaba, mas sim se adapta aos novos meios estruturais da sociedade.

Se hoje não existem mais os coronéis de patentes figurativas, conferidas pelo Estado, hoje temos, numa nova roupagem, políticos e empresários corruptos que ditam as regras. Se não temos mais cangaceiros de bornal espalhados pelas caatingas, assolando os sertões com suas ações criminosas, hoje temos milicianos, grileiros, traficantes e quadrilhas espalhando as mais diversas formas de miséria e degradação humana. O que podemos chamar poder paralelo ao do Estado.

Entraves da sociedade brasileira, como a desigualdade social, a pobreza e a falta de acesso à Justiça e a outros serviços fornecidos pelo Estado, foram fundamentais para o surgimento do cangaço e continuam sendo entraves na sociedade atual.

Diversas políticas sobre segurança pública são instauradas no Brasil, mas o problema continua. Não vejo o Estado desenvolver uma estratégia de recuperação dos territórios dominados pelas milícias e por traficantes. As ações contra os colarinhos brancos continuam sendo regidas e orquestrada para não prender ninguém.  O que vemos é o ciclo do mandonismo, favorecimentos e apadrinhamento, continuarem a regendo de forma orquestrada sobre as muitas vidas desfavorecidas e necessitadas nos quatro quantos do país. Em outras palavras, a velha cultura política do clientelismo e da dependência.

Em síntese, sem usar a lente de ideologias políticas, não podemos omitir ao menos o fato de que fazemos parte de um país que, mesmo tendo evoluído em algumas áreas, ainda somos uma nação atrasada, carente de “heróis” que realmente estejam dispostos dar a vida para sanar essa doença, visando a construção de uma sociedade mais igualitária, democrática e segura.

Bem, por enquanto só nos resta cantar: "Se gritar 'pega, ladrão'/ Não fica um, meu irmão".

17 respostas para “O CANGAÇO CONTINUA”

  1. Ivan Martins disse:

    Muito bem seus comentários
    Realmente foi assim mesmo.

  2. Marco Morais disse:

    Texto escrito, como sempre, com genialidade. Obrigado!

  3. JOÃO WILSON DE LUNA FREIRE disse:

    Bom dia Zé!
    Como sempre,seus relatos transmitem uma onda de conhecimentos de cada assunto escrito.
    São de uma clareza de detalhes que nós leva a participar ativamente como se fizéssemos parte do contexto.
    Continue nos deliciando com suas aulas oriundas de suas pesquisas e conhecimento.
    Parabéns!!!
    SAUDAÇÕES TRICOLORES! Grande abraço!
    🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🤝🤝🤝🤝🤝🤝🤝🤝

  4. Aldenor Bezerra disse:

    Texto muito bom e atual. Gostei muito!

  5. Emanuel Eduardo disse:

    Show Vianinha!! Você sabia que meu bisavô esteve na emboscada a lampião em Mossoró.. onde morreram alguns membros importantes do bando. Até hoje a cidade relembra esse feito com um teatro ao ar livre durante o São João chamado “Chuva de balas” e uma praça, chamada de praça da resistência, onde inclusive tem uma foto de meu bisavô… grande abraço amigo!!

  6. Gustavo Bruno disse:

    Se supera a cada texto. Mais uma ótima leitura.

  7. Vera Lucia Araújo de Oliveira disse:

    Realmente um grande aprendizado.
    Estes grupos apareceram em função, principalmente das péssimas condições sociais da região nordestina. O novo cangaço hoje é comprovado com roubos a bancos, empresas de valores e todo tipo de bandidagem como você descreveu, milícias, políticos etc.
    Podemos entender o cangaço continua.

  8. Vera Lucia Araújo de Oliveira disse:

    Realmente um grande aprendizado.
    Estes grupos apareceram em função, principalmente das péssimas condições sociais da região nordestina. O novo cangaço hoje é comprovado com roubos a bancos, empresas de valores e todo tipo de bandidagem como você descreveu,milícias, políticos etc..

    Podemos entender o cangaço continua.

  9. Cláudio Malheiros de Sousa disse:

    Excelente texto, grande aprendizado, essa é a realidade do nosso país.
    Parabéns Viana.

  10. Edmilson Santos disse:

    Excelente texto 👏🏿👏🏿👏🏿

  11. WASHINGTON SOARES DE ALMEIDA disse:

    Parabéns Viana. Como sempre passando suas mensagens em belos textos que sempre nos ensinam um pouco da nossa história e os dias de hoje. Obrigado mais uma vez .

  12. Fernando Cassimiro disse:

    O mal está instalado desde a origem. Deus Tenha misericórdia do nosso Brasil!

  13. Maria Elisa Alencar. disse:

    Eita ,esse assunto me remete a muitas situações vividas e narradas por conhecedores dos casos .
    Em primeiro lugar, vou falar um pouco de jesus Cristo, um ser humano, político,que não se vendeu ao sistema imoral da época . Uma igreja corrupta,líderes religiosos ,disposto a tudo para não perder o poder e a linhagem.
    Condenaram um inocente, pois para eles jesus estava se tornando uma ameaça .
    Os anos se passaram , e olho que quase nada mudou.
    A bandidagem só subiu de cargo.
    O assunto é amplo ,e no fringir dos ovos , me coloco a falar de um ser que se dizia cristão, O santo Padim padre Cícero do Juazeiro,que de santo não tinha nada . Um polito interesseiro,mentiroso. , o mí, mi, mi , da época.
    A história, se perpétua, irá até o final dos tempos. O mau continuará, cabe a cada um de nós, construir uma morada dentro do coração ❤️ ❤️,para abrigarmos ,o amor, respeito e a humildade.
    O que nós faz diferente e cremos num ser supremo e nos moldamos de fé .
    Muito bom seu texto . Uma clareza ,que nós faz ler prazerosamente.
    Parabéns professor .

  14. Elmo de Andrade Silva Filho disse:

    Muito bom e esclarecedor.
    Temática árdua e inglória esta da origem do bem e do mal.
    Grande abraço.

  15. Elmo de Andrade disse:

    👏👏👏👏👏

  16. Sinval disse:

    Excelente texto Viana,a violência que assola nosso país está sem controle.
    E o refrão da música no final cai bem.
    Um abraço

  17. Leickton disse:

    Com certeza, não tem como discordar do conteúdo conclusivo deste texto.
    Os operadores dos variados crimes da nossa atual sociedade, apenas são nomenclaturados diferentes dos grupos de bandidos dos tempos antigos. Porém, a criminalidade continua atual nos novos grupos criminosos.

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