27/09/2023

Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar

No início da década de 70, a Rede Globo de Televisão exibiu durante várias semanas (sempre nas sextas-feiras) uma série documental com o título “O Mundo em Guerra” (The World at War). Um dos históricos mais completos que tive a oportunidade de assistir, sobre o conflito mais sangrento do século XX, que foi a Segunda Guerra Mundial. As minúcias da guerra são vasculhas sob todos os pontos de vistas possíveis – a luta dos anônimos pela sobrevivência, as experiências dramáticas dos soldados, os bastidores políticos, as estratégias militares, tudo esclarecido em detalhes. Foi baseada em similar britânico, mas teve de ser adaptada ao público brasileiro. Dissecou as entranhas da Segunda Guerra Mundial pela primeira vez na televisão nacional. É memorável o capítulo que trata da participação brasileira. Mostrava detalhes, como fora o Brasil e seus pracinhas da FEB no maior confronto armado da História.

Se analisarmos os principais responsáveis por esse conflito militar global, que durou de 1939 a 1945, envolvendo a maioria das nações do mundo, isto é, a Alemanha e Itália, podemos nos questionar como tiranos como Adolf Hitler e Benito Mussolini chegaram ao poder e conseguiram implementar seus ideais, ou melhor, orquestraram um dos maiores genocídios da história da humanidade.  Como subiram ao poder em países democráticos?

Bem, primeiramente é importante destacar que no século XX, vários países sofreram ditaduras militares devido à fragilidade de suas instituições democráticas. E outro ponto a se lembrar, que nem sempre as ditaduras se dão por golpe militar, podem surgir por golpe de estado político. Exemplo de movimento desta ordem, se deu quando ocorreu a ditadura fascista, imposta por Adolf Hitler na Alemanha nazista e a ditadura fascista de Mussolini, na Itália.

Mas, por que a Alemanha, o país com um dos melhores sistemas de educação pública e a maior concentração de doutores do mundo na época, sucumbiu a um charlatão nazista?

Na verdade, a ascensão de Hitler ao comando supremo do III Reich, ocorreu ao longo de várias décadas. A ascensão se desencadeou a partir das próprias estruturas de governo. Foram aproveitadas as debilidades de um sistema falho e entraram partidos cujas ideologias não eram democráticas. Portanto, uma vez instalados no poder, lá permaneceram e se impuseram à vontade popular, suprimindo os demais partidos e oposições, portanto, a democracia.

Ressaltamos que nos regimes totalitários, verificamos a existência de um só partido político e uma ideologia claramente definida.  O governo se utiliza de meios de intimidação para controlar a população como a polícia política, a censura e a delação. A propaganda política também é largamente utilizada para promover os ideais do regime. Os regimes totalitários surgiram na Europa, por conta da crise econômica e política que ocorreu após a Primeira Guerra Mundial. Nesta época, surgiram correntes políticas que defendiam o uso da força, a eliminação dos partidos políticos e do parlamento como um caminho para tirar os países da crise econômica e política. Os regimes políticos totalitários apareceram naquele cenário caótico como possíveis soluções para os problemas da população, tais como: alta inflação, miséria, fome, desemprego e falta de assistência básica à população. Por isso, ganharam apoio popular.

Adolf Hitler, surgiu como uma esperança de recuperação numa Alemanha arrasada e humilhada, e que vivia numa profunda crise política, social e econômica, e o altíssimo desemprego era fonte de empobrecimento entre o povo.

O descontentamento social com o regime democrático ineficaz, o apoio do povo alemão aos partidos nacionalistas e o temor de uma revolução socialista, levaram a alta burguesia alemã, empresários e o clero a apoiarem a extrema-direita do espectro político, optando por extremistas de partidos como o Partido Nazista.

Embora o Nazismo partilhasse algumas características do Fascismo italiano, o regime nazista era mais radical e violento que o fascista. O nazismo, ainda acrescentou no seu programa a superioridade da raça ariana sobre às demais.

Hitler, era uma figura muito popular e tomou ações para que o discurso nazista alcançasse diferentes camadas da sociedade alemã. Um excelente orador, e se que cercava de pessoas que, como ele, não tinham medo de usar a violência para cumprir seus objetivos políticos. Com uma linguagem simples e direta, gestos dramáticos, emotivos e uma fala sedutora, tornaram a sua mensagem facilmente compreendida pelas massas. Prometia trabalho e melhores condições de vida. O resultado disso, foi que o nazismo ganhou força politicamente e começou a obter resultados expressivos nas eleições alemãs.

Apesar das eleições de julho de 1932, os nazistas terem se tornado o maior partido no Reichstag, não conseguiu uma maioria parlamentar. Todavia, em 1933, carregando ideais racistas, totalitaristas, nacionalistas, unipartidários e anticapitalistas, Hitler chegou ao cargo de chanceler.  Com a morte do presidente alemão Paul von Hindenburg (1934), Adolf Hitler assume os poderes da presidência. Importante ressaltar que o exército faz um juramento de lealdade pessoal a Hitler.

Uma análise mais objetiva mostra que, justamente quando era mais necessário, defender a democracia, os alemães caíram na tentação fácil de um demagogo patético, que fornecia uma falsa sensação de segurança e muito poucas propostas concretas de como lidar com os problemas da Alemanha, em 1932.

Voltamos a pergunta, por que tantos alemães instruídos votaram em um patético bufão que levou o país ao abismo?

Os alemães tinham perdido a fé no sistema político da época. A jovem democracia não trouxera os benefícios que muitos esperavam. Muitos dos eleitores de Hitler, ficaram incomodados com seu radicalismo, mas os partidos estabelecidos não pareciam oferecer boas alternativas. Muitos alemães sentiram que seu país sofria com uma crise moral, e Hitler prometeu uma restauração. Pessoas religiosas, sobretudo, ficaram horrorizadas com a arte moderna e os costumes culturais progressistas que surgiram por volta de 1920, época em que as mulheres se tornavam cada vez mais independentes, e a comunidade LGBT em Berlim começava a ganhar visibilidade.

Com relação a violência, Hitler argumentava que poderia ser resolvido, aplicando a pena de morte com mais frequência e aumentando as sentenças de prisão. Problemas econômicos, segundo ele, eram causados por atores externos e conspiradores comunistas. Os judeus - que representavam menos de 1% da população total - eram o bode expiatório favorito.

O regime se vangloriava de sua nova abordagem contra criminosos reincidentes, alcoólatras crônicos, criminosos sexuais, desempregados e mendigos. Hitler, prometeu “limpar as ruas”, e a maioria das pessoas aprovou a medida. Algumas acreditavam de fato no Hitler e no nazismo. Outras queriam proteger seu país e lutar como nacionalistas e patriotas. E provavelmente a maioria lutou para manter distantes os russos e os comunistas, que eram amplamente temidos e odiados no país. Muitos alemães que não apoiavam o regime preferiam ficar calados, para evitar problemas com os nazistas.

Tudo foi embalado em slogans fáceis de lembrar: "Alemanha acima de tudo", "Um povo, uma nação, um líder” e “Renascimento da Alemanha".

Quanto a Benito Mussolini, começou sua carreira política na militância de um núcleo socialista italiano, mas acabou sendo expulso do movimento socialista,  quando publicou um artigo em 1914 defendendo a participação da Itália na Primeira Guerra Mundial. Os socialistas italianos da época eram rigorosamente contrários à participação do país na guerra. Foi fundador do Partido Fascista (Fasci Italiani di Combattimento, em português Grupo de Combate) em 1919, que era uma organização paramilitar de cunho nacionalista e antiliberal.

Seu discurso nacionalista (grande orador) arregimentava membros e simpatizantes nacionalistas, militares e o proletariado dos grandes centros urbanos. Acreditava que a violência era um poderoso instrumento, para provocar mudanças na sociedade. O lema de Mussolini era "Crer, obedecer e combater".

O uso da violência contra os socialistas, recebeu forte apoio de diversas camadas da sociedade italiana. O objetivo era intimidar e enfraquecer o socialismo enquanto movimento social e político. A violência do fascismo italiano estava muito ligada com um forte militarismo e uniformização de seus partidários a partir de milícias conhecidas como camisas negras. Mussolini e seus fascistas aproveitaram-se do “perigo vermelho” para, em nome da preservação da ordem e da paz interna na Itália, obter apoio da elite industrial e dos proprietários.

A ascensão de Mussolini na sociedade italiana, foi tamanha que determinados grupos passaram a defender que o Duce (líder) fosse transformado em primeiro-ministro italiano. Mesmo assim, o partido que em 1922 já tinha 700.000 membros, não conseguiu convencer o eleitorado a lhe confiar o poder. Todavia, ainda em outubro 1922, após a ocorrência do evento denominado de “Marcha sobre Roma”, quando 50.000 militantes fascistas desfilaram, Mussolini consegue mostrar o poder do seu Partido Fascista, e o objetivo principal do evento que era pressionar o rei Vitor Emanuel III a empossa-lo como primeiro-ministro. Em 30 de outubro de 1922, Benito Mussolini, era empossado como primeiro-ministro italiano. A nomeação dele ao cargo aconteceu dentro da legalidade constitucional da Itália.

Um dos slogans de Benito Mussolini era "Dio - Patria - Famiglia”. Deus dirige os destinos dos povos. O homem vale pelo trabalho, pelo sacrifício em favor da Família, da Pátria e da Sociedade. Toda superioridade provém de uma só superioridade que existe acima dos homens: a sua comum e sobrenatural finalidade.

Algumas características podem ser mencionadas em relação ao neofascismo, tais como: Patriotismo exagerado que assume posturas xenófobas e violentas;  Desprezo pelos valores da democracia liberal, como as liberdades individuais; Construção de retórica violenta contra supostos “inimigos internos” que contribuem para a “degradação moral” da nação.

Que lições podemos ainda tirar, nos tempos atuais, acerca dessas duas personagem cruéis da história da humanidade? Autoritários, tiranos e despóticos, eles regeram seus países com mãos de ferro e não mediram meios para alcançarem os fins: perseguiram, torturaram, dissolveram partidos e se impuseram através da força. De certo modo, todos os ditadores do século XX contribuíram para o surgimento de novos líderes autoritários. Isso porque os passos de cada um deles serviram de guia e inspiração para outros políticos com aspirações igualmente antidemocráticas. Por isso que, temos que ficar sempre atentos, tanto no campo dos ideais políticos e religiosos de posições extremistas. O extremismo, não está relacionado a um posicionamento ideológico específico, na verdade ele pode existir na direita ou na esquerda. Posicionamentos apaixonados e incoerentes se misturam com discursos inflamados e violentos, carregados de reações extremas e radicais.

As ideologias extremistas foram responsáveis pela maior parte das tragédias humanas dos últimos séculos. Os radicais não têm a democracia como um valor universal, e admitem que regimes autoritários (ou semi-autoritários) são aceitáveis em circunstâncias determinadas.

A democracia está em erosão em todo o mundo, de acordo com o último relatório do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral - IDEA (nov/2022). Dados mostram cada vez mais países a afastar-se da democracia e a caminhar para o autoritarismo. O número de países a nível mundial que avançam na direção do autoritarismo excede o dobro do número de países que avançam numa direção democrática (45% da população mundial vive em uma democracia). O relatório recomenda uma série de ações políticas para impulsionar a renovação democrática global, adotando contratos sociais mais equitativos e sustentáveis, reformando as instituições políticas existentes e fortalecendo as defesas contra a regressão democrática e o autoritarismo.

Toda a sociedade que possui uma democracia madura deveria tolerar a existência de diversos grupos ideológicos, pois é essa diversidade que melhora o nível do debate público e político. As vozes discordantes não podem ser tratadas como inimigas, pois elas fazem parte do diálogo construtivo e equilibram a discussão política. Ao ignorar opiniões contrárias, os indivíduos podem, perigosamente, se aproximar do fanatismo político, aderindo cegamente a uma posição ou sistema político.

O que vemos hoje, infelizmente, são multidões que buscam apenas desconstruir o discurso e a autoridade de seu "inimigo", quando deveriam debater de modo civilizado formas de construir uma nação mais justa, democrática e desenvolvida. É preciso ter autocrítica, nem sempre seguir as multidões é a melhor forma de construir uma democracia.

Lembrando da frase de Nelson Rodrigues, o genial escritor brasileiro que tem as mais contundentes tiradas da crônica brasileira: “Toda a unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar”. Nelson Rodrigues tem razão, mas nem sempre. Há casos em que a unanimidade não é burra, ou talvez a unanimidade não seja unânime.

Na verdade, na vida real, a unanimidade só pode existir por dois fatores: Pela concordância cega ou pelo silêncio dos críticos. Onde há concordância cega, predomina a burrice; e, onde há o silêncio, certamente predomina o medo de se fazer oposição.

A unanimidade é tão pouco recomendada que nem mesmo Jesus, na plenitude da sua perfeição, a quis. Se houvesse unanimidade, a sua missão não teria atingido o objetivo. Foi preciso a discordância de um dos seus 12 apóstolos para que, como bem afirmou o Mestre, as escrituras se cumprissem (Lc 22:37 e Mt 26:54).

Ao que pese o exemplo de Jesus, fica evidente que mesmo em se tratando de alguém que absolutamente esteja certo e seja perfeito, a discordância é instrumento de extremo valor.

Como diria o pensador francês Gustave le Bom (1841 " 1931), em sua obra Psicologia das multidões, "na mentalidade coletiva, as aptidões intelectuais dos indivíduos e, consequentemente, suas personalidades se enfraquecem".

12 respostas para “Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar”

  1. Marco Morais disse:

    Excelente texto, assim como os outros, de altíssimo nível. A começar pelo título, já vale nota 1000.

  2. CLAUDIO LUIZ PONTES disse:

    Mais um texto primoroso, que serve para nossa realidade brasileira atual.
    Parabéns Viana

  3. CLAUDIO LUIZ PONTES disse:

    Artigo excelente e que podemos ligar ao estágio político do Brasil atual.
    Parabéns

  4. José vamilsom pinto disse:

    Excelente texto amigo continue a escrever estas joias, abraços

  5. Junior Ribeiro disse:

    Mais um excelente artigo. Como sempre uma verdadeira aula histórica. Como disse o colega Marco Morais “A começar pelo título, já vale nota 1000.” Parabéns!!!

  6. JOÃO WILSON DE LUNA FREIRE disse:

    Zé mais uma vez Parabéns pelo excelente relato.
    Vejo cada vez mais, o futuro do nosso País, se aproximar ao que aconteceu no passado, com as duas potências do texto postado.
    Aquele abraço!SAUDAÇÕES TRICOLORES!!
    🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬🇧🇬

  7. Erbio Ferreira disse:

    Que maravilha, meu irmão!

    Parabéns, nada tão atual!

  8. Vera Lucia Araújo de Oliveira disse:

    Concordo com os relatos dos colegas acima. E como você escreveu as “as ideologias extremista foram responsáveis por tragédias, então não podemos se contentar com os absurdos de algumas pessoas fanáticas no nosso país. Abraços .

  9. Marcus Soares disse:

    Mais um belíssimo texto, e como nem toda unanimidade é burra e há exceções à confirmar a regra, todos os comentários do blog, foram unânimes ao reconhecer a excelência do texto.
    Parabéns Viana!

  10. Guilherme dos Santos Neto disse:

    Valeu amigo Viana!
    Mais um texto excelente, infelizmente tivemos a beira do abismo, essas sementes não podem brotar.

  11. WASHINGTON SOARES DE ALMEIDA disse:

    Parabéns Viana . Excelente texto que mostra um pouco do momento que passamos na política . Muito bom. Abraços

  12. Leickton disse:

    A pouco tempo, tivemos um líder brasileiro, Jair Bolsonaro, que tentou implantar o fascismo no Brasil, Inclusive, utilizando o slogan de Mussolini:” Deus, Pátria e Família “.

    Parabéns pelo texto, Viana!

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