24/06/2024

Deus escreve certo por linhas tortas

No nosso dia a dia, quase sempre falamos ou escutamos gírias, expressões populares e ditados populares. Uma característica que diferencia as expressões populares das gírias é a duração. Enquanto a gíria vive durante cerca de cinco anos em uma comunidade, a expressão popular pode se manter por muito tempo, talvez décadas.

As gírias brasileiras da mesma forma que revelam o diálogo das gerações atuais, são, também, uma viagem no tempo para gerações passadas. Quando compreendidas, são um espelho das diversas culturas e regiões que encontramos aqui no Brasil.

Em 1985, a partir da observação diária do que era falado nos jornais e rádios populares, o professor e jornalista brasileiro João Bosco Serra e Gurgel do Rio de Janeiro escreveu o “Dicionário das Gírias”.

As expressões populares, também chamadas expressões idiomáticas são um recurso de escrita ou fala por meio do qual uma frase ou expressão ganha outro significado, indo além do significado literal das palavras que a formam. Por exemplo: na expressão “pode tirar seu cavalinho da chuva”, o objetivo não é aconselhar alguém a colocar o animal em um lugar coberto, no qual não caia chuva. Quando uma pessoa diz isso, ela quer informar que se deve desistir de determinada ideia.

Enquanto os ditados populares, também chamados de provérbios, são frases curtas que transmitem ensinamentos retirados de experiências de vida, ou seja, transmitem conhecimentos e sabedoria popular. Também atravessam gerações e passam por nós todos os dias durante anos a fio. Fazem parte do nosso cotidiano e expressam importantes lições, mas para isso é fundamental que possamos parar para refletir sobre eles. Por exemplo: “Entre marido e mulher não se mete a colher” ou ainda “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”.

Diversas expressões populares antigas contam com origens curiosas, que vão da chegada da coroa portuguesa ao Brasil, passando por jogos populares, entre outros motivos.

É importante lembrar que falar português no Brasil é diferente de falar português em Portugal. Até porque existem inúmeras expressões do português que têm um significado totalmente diferente aqui no Brasil. Por exemplo, a expressão “Porras recheadas”. Esse aqui é sempre motivo de muitas risadas e piadas nas redes sociais. Isso porque esse nome, para os brasileiros é bem sugestivo, mas em Portugal significa churros. É isso mesmo, a porra recheada é nada mais, nada” menos que churros.

Algumas expressões como “quebrar o gelo” e “puxar o saco”, algumas pessoas pensam que são coisas da atualidade, estão muito enganadas. A maioria desses dizeres tem pelo menos um século de idade, com vários datando do Brasil colonial e até da Idade Média.

Recentemente estava assistindo um programa de auditório na televisão quando o apresentado perguntou a um jovem da plateia se ele sabia o que era a gíria “é uma brasa mora” ou “é uma brasa, mora! A resposta foi negativa. Para quem não se lembra, na década de 60, ouvia-se essa gíria, principalmente pronunciada pelo Rei Roberto Carlos, que seria falar de algo bom ou de alguém legal. Nessa fase, as mocinhas diziam que o rapaz que achavam bonito era “um pão”.

Ainda nesta década tínhamos: Borogodó (significa charme, sensualidade), Bulhufas (significa o mesmo que nada, coisa nenhuma), Papo furado (o mesmo que conversa fiada).

Entrando em nossa máquina do tempo, podemos relembrar de algumas gírias da década de 50, tais como:  Chá de cadeira (é o mesmo que ter que ficar esperando por muito tempo), Marcar touca (perder uma oportunidade, dar bobeira). Da década 70: Grilado (estar desconfiado de alguma coisa), Patota (é uma turma de amigos). Da década 80: Viajar na maionese (ficar imaginando coisas absurdas), Pentelho (pessoa muito chata, irritante). Da década 90: Xavecar (significa paquerar, flertar), Queimar o filme (estragar a imagem, passar por algo vergonhoso). Da Década 2000: Passar o rodo (é o mesmo que beijar com muitas pessoa), Tá dominado (significa que está tudo sob controle).

Quem não se lembra do ditado popular atual “Cada um no seu quadrado”, originário da dança do quadrado se tornou um fenômeno de internet. Esse ditado popular é muito utilizado para referir sobre a importância de cada um cuidar de seus próprios assuntos, sem intrometer-se em coisas que não são de sua alçada ou para as quais não tem competência. Tem o mesmo sentido “Cada macaco no seu galho”. A origem desse ditado nos remete ainda ao século XIX, onde países como o Brasil, Argentina e Uruguai se uniram em uma guerra contra o Paraguai. Em uma estrutura racista de época, os negros que participavam do embate eram denominados macacos. Assim, na tentativa de surpreender os inimigos ao avistar os mesmos, Duque de Caxias gritou: Cada macaco no seu galho! Nesse momento, a expressão fazia a referência de que os homens negros do exército se organizassem de forma devida, tendo se tornado famosa a partir de então.

Atualmente, no Brasil, temos um ditado que traduz bem a ideologia política de muitos brasileiros, que diz: “O pior cego é o que não quer ver”. Esse ditado diz respeito à pessoa que não quer enxergar o que está na sua frente, àquele que se nega a ver a verdade. Consta que, em 1647, em Nimes, na França, na universidade local, o doutor Vicent de Paul D`Argent fez o primeiro transplante de córnea em um aldeão de nome Angel. Foi um sucesso da medicina da época, menos pra Angel, que assim que passou a enxergar ficou horrorizado com o mundo que via. Disse que o mundo que ele imaginava era muito melhor. Pediu ao cirurgião que arrancasse seus olhos. O caso foi acabar no tribunal de Paris e no Vaticano. Angel ganhou a causa e entrou pra história como o cego que não quis ver.

Pra quem gosta de viajar ou se aventurar, um ditado bastante utilizado é “Quem tem boca vai a Roma”. Essa expressão é utilizada para destacar o poder da comunicação. Interessante que a frase correta não tem nada a ver com a que conhecemos; nem com o fato de usarmos nossa capacidade de comunicação para ir a qualquer parte. Pesquisas indicam que com o tempo essa expressão foi sendo modificada da original que seria “Quem tem boca vaia Roma” (do verbo vaiar).  A frase correta é, sim, uma crítica política. Isso porque a plebe e os escravos acreditavam que a cidade de Roma merecia vaias por causa de seu imperador, Júlio Cesar, cuja opinião ninguém podia contrariar.

Quanto ao campo de “expressões”, podemos dizer é bastante vasto tanto na cultura nacional quanto internacional. Por exemplo, a expressão “Vitória de Pirro”. Em 279 antes de Cristo, Pirro - rei e general do Epiro - travou contra os romanos a Batalha de Ásculo e conquistou a vitória. Porém, com um elevado número de baixas de oficiais e soldados, obteve prejuízos irreparáveis para o seu exército, o que comprometeu a continuidade da guerra contra Roma. Ao observar os saldos da batalha, Pirro teria dito: “outra vitória como esta e estamos acabados”. O episódio ficou conhecido como a “Vitória de Pirro”, termo que hoje é utilizado, para descrever uma vitória com efeitos prejudiciais ao vencedor.

Diversas das expressões brasileiras tiveram sua origem atrelada à monarquia portuguesa, por exemplo, “vá tomar banho!”. Nos dias de hoje, utilizamos essa expressão para mostrar a alguém que essa pessoa está nos irritando e pedir para que pare de fazer isso imediatamente. Já no passado, essa expressão tinha um significado muito mais literal. Os nativos brasileiros sempre tomaram muito mais banhos que os membros da corte portuguesa, que muitas vezes passavam dias sem se banharem e muitas vezes utilizavam as mesmas vestimentas sujas. O mau cheiro obviamente incomodava os indígenas e outros brasileiros que já estavam acostumados a tomar mais banhos, de modo que uma expressão comum quando estes eram importunados pelos nobres portugueses era mandá-los tomar banho.

Outra expressão popular da língua portuguesa bastante conhecida é a “Casa da mãe Joana” que define um lugar sem regras, onde tudo é permitido, não há limites, com muita bagunça e confusão. A mulher que deu nome a tal casa viveu no século 14. Joana era condessa de Provença e rainha de Nápoles (Itália). Teve a vida cheia de confusões. Em 1347, aos 21 anos, regulamentou os bordéis da cidade de Avignon, onde vivia refugiada. Uma das normas dizia: "o lugar terá uma porta por onde todos possam entrar". "Casa da mãe Joana" virou sinônimo de prostíbulo, de lugar onde impera a bagunça.

No sistema de transito temos outro exemplo bem interessante. No Brasil o sistema de trânsito utiliza o que chamamos de “mão francesa” e na Inglaterra assim como outras localidades que outrora foram colônias inglesas, utilizam o denominado de “mão inglesa”. No caso de mão francesa adotamos o sistema de transito onde dirigimos ao lado direito da via e fazemos as ultrapassagens pelo lado esquerdo. Por outro lado, a Inglaterra se mantem com o fluxo à esquerda e consequentemente a ultrapassagem é pelo lado direito.

Até o final do século 18, era hábito para os cavaleiros e cocheiros viajarem pelo lado esquerdo das estradas. O motivo disso é bem simples: a maioria das pessoas era destra, usando sua espada com a mão direita. Para que ela ficasse livre e do lado certo para um eventual duelo (o que não era raro naquele tempo), era preciso andar desse lado. Se a pessoa viajasse do lado direito, seu lado esquerdo estaria totalmente exposto.

Existe ainda uma outra versão para explicar como surgiu a mão inglesa. Alguns dizem que se os cocheiros ficassem do lado direito das ruas e estradas, eles podiam acertar um pedestre na calçada quando açoitassem seus animais, o que geralmente também era feito com a mão direita. Mas a primeira versão é mais aceita (e tem mais sentido).

Quanto a “mão francesa” utilizada no Brasil, a resposta a essa pergunta tem nome e sobrenome: Napoleão Bonaparte. Esse imperador era canhoto, por isso ele precisava ficar do lado direito duma via para estar preparado num duelo, já que empunhava sua espada com a mão esquerda. Com isso, o imperador francês deu ordens para que todos se adequassem, passando a estabelecer o que chamamos de mão francesa, ou seja, andar pelo lado direito duma via. A influência nas América ocorreu devido ao fato que todos os colonizadores (além dos franceses, os holandeses, espanhóis e portugueses) foram dominados por Napoleão em algum período, não tendo outra opção a não ser adotar seu sistema. Quando dominaram outros países, o costume simplesmente foi passado adiante.

Na política, uma expressão que pelo andar da carruagem nunca vai sair de modo é “Terminar em pizza”. O termo, que denota que algo errado deve acabar sem nenhuma punição, surgiu no futebol. Na década de 1960, alguns dirigentes do Palmeiras já estavam há 14 horas reunidos discutindo assuntos do clube, quando a fome bateu. A solução foi terminar a reunião em uma pizzaria, onde a paz reinou depois de muita mussarela. O jornalista Milton Peruzzi, que acompanhava o imbróglio, registrou a seguinte manchete no Gazeta Esportiva: “Crise do Palmeiras termina em pizza”. A expressão voltou a ganhar força na época do impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Collor de Mello, em 1992. Como muitos duvidavam que Collor fosse mesmo punido, em vez de “terminar em impeachment”, dizia-se que o caso “terminaria em pizza” (até a sonoridade é parecida). Por isso, até hoje, o termo segue muito associado a escândalos políticos. 

Continuando na política, podemos lembrar da expressão “colocar a mão no fogo”. Como os políticos brasileiros estão cada vez mais desacreditados pelos brasileiros, dificilmente alguém coloca a mão no fogo por eles. Essa expressão popular é utilizada quando temos total confiança em alguém e, por isso, faríamos algo tão absurdo como “colocar a mão no fogo”, confirmando que acreditamos que aquela pessoa não nos decepcionará. Significa confiar muito em alguém, a ponto de jurar pela sua inocência. A expressão pode ter se originado na prova do ferro caldo, utilizada durante a Idade Média na época da Inquisição. Uma pessoa acusada de heresia tinha sua mão envolvida em uma estopa e era obrigada a andar alguns metros segurando uma barra de ferro aquecida. Três dias depois, a estopa era retirada e a mão do suposto herege era checada: se estivesse queimada, o destino era a forca; se estivesse ilesa, era provada sua inocência. Daí, botar a mão no fogo virou sinônimo de atestar confiança quase cega em alguém. Bem, seria uma boa prova para nossos políticos se submeterem. O problema era que iria encher os hospitais de queimados.

Bem, são muitas as expressões repetimos sem sequer percebermos aquilo que significam. Essas pequenas frases fazem parte da tradição oral da sabedoria popular e sintetizam ideias sobre a convivência em sociedade, trazendo muitas vezes conselhos valiosos a respeito das relações humanas.

Concluindo, imaginem dois amigos conversando sentados num banco de praça utilizando de ditados populares, será que entenderíamos tudo se tivéssemos ao lado?

- (Fulano) Amigo, como está aquele seu negócio?

- (Beltrano) Acabou-se o que era doce. A vaca foi pro brejo. Infelizmente meus funcionários cuspiram no prato que comiam e transformaram meu negócio numa casa da mãe Joana. Minha empresa passou a ser um verdadeiro balaio de gatos. Na verdade, fui colocar o carro na frente dos bois e dei com os burros n’água.  Agora estou com a corda no pescoço. E o pior, com as mãos abanando e na rua da amargura. Mas, não vou lamber as botas de ninguém principalmente dos amigos da onça.

- (Fulano) Amigo, espere a poeira abaixar.  Sei que está de saco cheio e fulo da vida mas você não é de dar para trás. Além disso, entende do riscado. Mostre com quantos paus se faz uma canoa. Por enquanto você está com os bofes de fora e sentindo como um peixe fora d’água.

- (
Beltrano) Você sabe que não faço mal a uma mosca e nem passo a perna em ninguém. Não vou descer a lenha ou melhor quebrar o pau com ninguém. Vou dar tempo ao tempo. Bem, por enquanto só quero encher a lata e olhar para o próprio rabo. Como diz aquele provérbio: Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe.