Embora não seja um assunto novo, o racismo passou a ser, nos últimos tempo, um tema principal dos debates públicos, dentro e fora das redes sociais. Vejamos, por exemplo, a palavra “macaco”, como ela é usada nos campos de futebol para ferir (jogadores negros).
Lembramos, também, quando da chegada de médicos cubanos (2015), em sua maioria negros, que vieram para o país através do Programa Mais Médicos. Nos aeroportos, eles foram recebidos com vaias e bananas por médicos brasileiros, majoritariamente brancos.
O racismo, foi por muito tempo naturalizado na sociedade e, muitas vezes, o debate sobre esse tema, causa constrangimento ou irritação, porque provoca nas pessoas a necessidade de refletir sobre suas ações.
A ideia de que “hoje tudo é racismo” ou “não dá mais pra brincar com nada” fazem com que até mesmo propor esse debate seja difícil. Tem um processo de conscientização envolvido. Muitas pessoas não veem maldade nessas “brincadeiras” e acham que a intenção de quem fez a brincadeira, vale mais do que o sentimento causado pela brincadeira, no outro, na vítima.
No Brasil, durante os períodos colonial e imperial, foi a escravidão que se encarregou de posicionar os negros e os brancos em mundos diferentes. Com a assinatura da Lei Áurea, em 1888, os brancos criaram mecanismos menos explícitos do que as senzalas e os grilhões, para manter os negros num lugar de subordinação. Da escravidão ao formato atual, o racismo foi se metamorfoseando no correr no tempo, hábil em adaptar-se às mudanças da sociedade.
No começo do século 20, no meio acadêmico, havia a ideia de que era o elemento negro que produzia a desordem e as crises que o Brasil vivia na Primeira República. Isso, legitimou o uso da violência contra essa população. Ao mesmo tempo, acreditava-se que a miscigenação seria benéfica para o país porque, nessa mistura, o sangue branco forte prevaleceria sobre o sangue negro fraco e haveria o branqueamento da população. Aquele grupo desestabilizador acabaria sendo eliminado. Sendo mais direto: eugenia. Na década de 1930, o discurso que passou a vigorar foi a da democracia racial. O Brasil seria um país plural, com o branco, o negro e o indígena convivendo em harmonia, todos importantes, desde que cada raça ficasse no seu lugar. Já não se pensava mais em eliminar o negro, mas sim em absorvê-lo e mantê-lo numa posição subalterna.
O historiador, sociólogo e escritor pernambucano, Gilberto Freyre (1900-1987), oriundo de família rica e tradicional, escreveu a primeira grande obra brasileira que trata das relações entre senhores e escravos no período colonial e imperial no Brasil, o livro Casa Grande e Senzala, publicado em 1936. A obra-prima de Freyre, dedica páginas e mais páginas ao relato das atrocidades que se fizeram contra os escravos. Está tudo ali, todos os sofrimentos impostos aos escravos: o trabalho desumano nas lavouras, as meninas menores de 14 anos, virgens, violentadas na crença de que o estupro curaria a sífilis, as mucamas que tinham os olhos furados e os peitos dilacerados apenas por despertar os ciúmes das senhoras de engenho.
O papel de Freyre, porém foi outro, muito mais marcante. No debate com o pensamento majoritário de então, o que Freyre fez foi resgatar a importância do negro para a construção de nossa identidade nacional, para a construção da nossa cultura, do nosso jeito de pensar, de agir e de falar. Ele enalteceu a figura do negro dando e ela sua real dimensão, sua real importância. A nossa miscigenação, concluímos depois de ler Freyre, não é a nossa chaga, mas a nossa principal virtude.
Segundo os estudiosos, o que vigora no Brasil é o racismo estrutural. O racismo é estrutural porque se apresenta como um alicerce em cima do qual se constroem as relações políticas, econômicas e sociais no país. As pessoas e as instituições são moldadas, por vezes de forma inconsciente, para encarar como normal que brancos e negros ocupem lugares diferentes. O racismo estrutural, impede que as pessoas enxerguem suas atitudes como racistas e se responsabilizem pelas consequências delas.
Muitos de nós fomos ensinados a acreditar na existência de diferenças biológicas e genéticas entre as raças. Essa biologia responde por diferenças visuais tais como a cor da pele, textura capilar, formato dos olhos e características que achamos poder ver, como sexualidade, habilidades atléticas ou competências matemáticas. A ideia de raça como um construto biológico facilita acreditar que a maioria das divisões que vemos na sociedade é natural. Todavia, a raça, assim como o gênero, é socialmente construída. As diferenças que detectamos com nossos olhos, textura capilar e cor dos olhos, são superficiais e emergiram como adaptações geográficas. Por baixo da pele, não existe raça biológica de verdade. As características externas que usamos para definir raça são indicadores inconfiáveis da variação genética entre duas pessoas quaisquer.
Nos últimos trinta anos, este é o consenso entre os geneticistas: os homens são todos iguais ou, como diz o geneticista Sergio Penas, os homens são igualmente diferentes.
Consideremos dos grupos. O primeiro com aqueles que o senso comum diz ser de “raça” negra: homem de cor preta, nariz achatado e cabelo crespo. O segundo com aqueles que o mesmo senso comum diz ser da “raça” branca: homens de cor branca, nariz afinado e cabelos lisos.
As diferenças entre indivíduos de um mesmo grupo serão sempre maiores do que as diferenças entre dois grupos, considerados em seu conjunto. Tanto no grupo de negros ou brancos haverá indivíduos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, com propensão a doenças cardíacas, com proteção genética contra o câncer, com propensão genética ao câncer, etc.
A única coisa que vai variar entre os dois grupos é a cor da pele, o formato do nariz e a textura do cabelo, e, mesmo assim, apenas porque os dois grupos já foram selecionados a partir dessas diferenças.
O genoma humano é composto de 25 mil genes. As diferenças mais aparente (cor da pele, textura do cabelo, formato do nariz) são determinadas por um conjunto de genes insignificantemente pequeno se comparado a todos os genes humanos. Para ser exato, as diferenças entre o branco nórdico e um negro africano compreende apenas a fração de 0,005 do genoma humano.
Por essa razão, a imensa maioria dos geneticistas é peremptória: no que diz respeito aos homens, a genética não autoriza falar em raça. Segundo o geneticista Craig Venter, o primeiro a descrever a sequência do genoma humano, “raça é um conceito social, não um conceito científico”.
Independentemente de definição, o homem brasileiro é uma amálgama de várias correntes raciais, resultante de diferentes elementos étnicos: o aborígine, o branco colonizador e o negro escravo. Do ponto de vista psicológico, essa pluralidade racial também reflete os temperamentos, de tal sorte, que se poderia formular um diagnóstico genérico da personalidade social brasileira em suas grandes tônicas psico-sociais. Assim, encontramos no homem brasileiro diversas qualidades. Por exemplo, herdamos do português a instabilidade emocional, o sentimento de religiosidade e o individualismo decorrente da figura do patriarca avulta, tomando conta da terra e das gentes de cada grupo isolado, o sentimentalismo, traço fundamental do brasileiro, fruto do lirismo do português, do espírito contemplativo. Herdamos o sentimento de amor à liberdade e a natureza do índio e da nostalgia, a abstração e o senso estético do negro.
Outros elementos étnicos oriundos das imigrações trouxeram subsídios a nossa civilização. Assim, do germânico herdamos um certo conteúdo de idealismo e teorização, do italiano, a exuberância do gesto e palavras, e certo culto às artes, do árabe a tendência à especulação, do francês, a ilustração, e a cultura ornamental, e do britânico, certo senso crítico e humorismo irreverentes. Assim, temos o elenco das principais qualidades do caráter nacional.
Importante ressaltar sobre os dados divulgados sobre a população no Brasil no último censo demográfico (2010). Segundo o IBGE, 7,5% são negros, 47,5% brancos e 43,4% são pardos.
Como o pardo tem de ser, necessariamente, o resultado do casamento entre brancos e negros, o número de brasileiros com algum negro na família é necessariamente alto. Isso seria a prova que somos uma nação majoritariamente livre de ódio racial (repito que, sim, sei que o racismo existe aqui e onde mais houver seres humanos reunidos, mas, certamente, ele não é um traço marcante de nossa identidade nacional).
A cor da pele não determina sequer a ancestralidade, Nada garante que um indivíduo negro tenha a maior parte de seus ancestrais vindos da África. Isso é especialmente verdadeiro no Brasil, devido ao alto grau de miscigenação.
Com anos de naturalização de estigmas, de inferiorização e ridicularização do povo negro, o uso de palavras, frases e brincadeiras racistas que deprimem, machucam e mutilam física ou mentalmente, muitas vezes, repetimos de geração para geração. Trata-se de um conjunto de práticas, hábitos, situações e falas embutido em nossos costumes e que promove, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial. Podemos tomar alguns exemplos: “ele é um negro de alma branca”, “não sou racista, tenho até amigos negros”, “negro correndo é ladrão”, “as crianças não se assustam com esse seu cabelo?”, “a coisa tá preta”, “negro tem cheiro forte”, “negros se destacam apenas em atividades recreativas ou no esporte”, “preto quando não suja na entrada, suja na saída”, “ele nem tem cara de médico, parece mais com o faxineiro”, “ainda bem que nasceu clarinho!”, “negro é complexado”, “ela ainda anda com aquela negrada?”,
Algumas expressões que também são racistas e tão comuns no nosso vocabulário, tais como: “Pensa que eu sou tuas negas”. Ela surgiu na época da escravidão, quando, as mulheres negras eram consideradas “propriedades” dos seus senhores, que se achavam no direito de fazer tudo com elas – inclusive estupros, assédios e agressões. A expressão "dar com pau", usada hoje em dia para expressar "abundância" ou "grande quantidade", também remete à violência da escravidão. Expressão originada nos navios negreiros. Muitos dos capturados preferiam morrer a serem escravizados e faziam greve de fome na travessia entre o continente africano e o Brasil. Para obrigá-los a se alimentar, um 'pau de comer' foi criado para jogar angú, sopa e outros alimentos pela boca.
“Cabelo ruim”, “cabelo bombril”, “cabelo duro”.Termos racistas usados como bullying que depreciam a imagem e o cabelo de pessoas negras. Falar mal das características dos cabelos Afro também é racismo. Melhor falar: “cabelo crespo”, “cacheado” ou “afro”.
O pior é que em nosso meio social, sempre escutamos alguém com essas frases: “deixa de vitimismo, foi só uma brincadeira”, “nossa, o mundo tá chato, agora tudo é racismo, é muito mimimi”, “os negros são os mais racistas”, etc.
Como é possível mudar essa situação? Pensando de forma mais pragmática, uma das maneiras mais simples de se lidar com o racismo em seu dia a dia é exercer mais empatia pelo próximo, independentemente da cor da pele ou gênero. Exercermos sinceramente a empatia, que é a capacidade psicológica de sentir o que sentiria outra pessoa, caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela. É tentar compreender sentimentos e emoções, procurando experimentar o que sente outro indivíduo. Por exemplo, ao ver ou saber que uma pessoa sofreu racismo, você pode ter empatia por ela, tentando entender o que ela sentiu ao sofrer com o episódio.
O racismo faz parte das raízes da nossa sociedade e cultura e, por isso, consiste em um monstro de muitas faces. Está profundamente entranhado em nosso tecido social. Ele não se limita a um só ato ou pessoa. Barrar as forças do racismo é trabalho contínuo, de uma vida toda porque as forças que nos condicionam a estrutura racista estão sempre em ação.
O racismo não é causado por uma patologia, uma anomalia, ou a falta de caráter de alguém: é, na verdade, um sistema complexo e histórico, fazendo com que o racismo ocorra a todo momento, e que as pessoas sejam racistas sem perceberem
O racismo está em nosso dia a dia, por isso, para combatê-lo devemos estar vigilantes de nossas ações e de ações coletivas que perpetuem injustiças. Mais do que não ser racista, é nosso dever social combater o racismo. E isso não se aplica apenas aos discursos em redes sociais, ou posicionamentos pessoais dentro de correntes em prol da causa. Esta é uma ação que precisa ser exercitada no nosso dia a dia, com as pessoas próximas a nós.
Se algum amigo ou colega seu fizer comentários racistas: situe eles. Se alguém compartilhar uma piada racista perto de você: lembre-se que racismo não tem graça e que é crime. Se seus familiares tiverem noções equivocadas sobre o racismo estrutural, construa conhecimento junto a eles e procure explicar mais sobre a causa.
Estudiosos, da desigualdade racial, afirmam que, para que a luta contra a discriminação da população negra produza resultados consistentes, há um passo decisivo que nós, brasileiros, ainda não demos: assumir que somos, sim, racistas — seja como indivíduos, seja como sociedade. Quando se admite a existência do racismo, cria-se automaticamente a obrigação moral de agir contra ele: A negação é essencial para a continuidade do racismo.
Os brasileiros entendem que é lá fora que existe ódio racial, não aqui. Acreditam que no Brasil vivemos numa democracia racial, miscigenados, felizes e sem conflito. Essa é a perversidade do nosso racismo. Ele foi construído de uma forma tão habilidosa que os brasileiros chegam ao ponto de não quererem ou não conseguirem enxergar a realidade gritante que está bem diante dos seus olhos.
Não é possível haver democracia numa sociedade racista. A sociedade racista é sistemicamente autoritária, porque precisa se utilizar da força para rejeitar as reivindicações justas da maioria e atender à minoria. Manter a desigualdade, a pobreza e a baixa representatividade política exige violência sistêmica, que depois acabará sendo aproveitada também contra os brancos. Além disso, se a maioria da sociedade é pobre, violentada e humilhada o tempo todo, essa sociedade não pode ser saudável. É um lugar péssimo para qualquer pessoa viver, inclusive os brancos. O engajamento na luta antirracista significa compromisso com a democracia, o bom desenvolvimento econômico e a humanidade.
Eu acredito que majoritariamente, ainda somos uma nação que acredita nas virtudes da nossa miscigenação, da convivência harmoniosa entre todas as cores e nas vantagens, imensas vantagens, de sermos um pais em que os racistas, quando existem, envergonham-se do próprio racismo. “Numa sociedade racista, não basta não ser racista é preciso ser antirracista.” Ângela Davis.