26/10/2021

Não importa se o gato é preto ou branco desde que cace ratos

Em novembro de 1995, a Gazeta Mercantil publicou o seguinte artigo: “Quanto a Cuba, o poder de Castro não ameaça os Estados Unidos mais do que uma pulga ameaça um elefante. Ele prejudica os cubanos, contudo. Aqueles que apoiam o embargo gostam de basear seus argumentos no princípio, segundo o qual, não se deve manter intercâmbio comercial com países cujos governos não reconhecem os direitos políticos de seus cidadãos e, em alguns casos, também os direitos humanos. Esse é um princípio sempre válido? Os Estados Unidos proibiram o comércio com a China?” Por esse artigo parece que quando se trata de determinadas nações, não vale o dito popular: “o pau que dá em Chico, dá em Francisco”.

O desenvolvimento do comércio Brasil-China teve início em meados dos anos 1950, ainda informalmente e sem uma notável expressividade econômica. No entanto, no começo da década de 90, o comércio bilateral entre os países experimentou um boom em suas transações.

Ao longo deste século, a China tornou-se o maior investidor externo do país. Segundo dados do Ministério das Relações Exteriores divulgados em 2019, entre 2003 e 2019 os chineses colocaram por aqui US$ 72 bilhões, ou 37,3% do total investido por estrangeiros. Apesar de menores em número de projetos, os chineses já investem mais no Brasil do que americanos ou japoneses e canadenses, cuja presença no país já está estabelecida há décadas.

Após anos de marginalização internacional, a China conseguiu, em 1971, tornar-se membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Essa aproximação deu-se, principalmente, com os Estados Unidos, com quem a China formou uma aliança tática contra a “hegemonia soviética”.

A partir de 1978, liderado por Deng Xiaoping, a China lançou uma política de reformas e modernização de longo prazo, que consistia na reestruturação da indústria, da agricultura, da defesa e da cultura. Deng Xiaoping entendeu que o mundo era comandado pelo dólar. As reformas econômicas visavam principalmente a integração da China ao mundo capitalista.  A China passaria a ser uma grande empresa, "fábrica do mundo", disposta a produzir de tudo com seu estoque de mão de obra ociosa.

Fonte: Internet

Depois de quinze anos como candidata, as mudanças permitiram que a China atingisse o seu objetivo, o que permitiu seu ingresso como membro da Organização Mundial do Comércio em 2001 e lhe abriu definitivamente as portas para a globalização e catalisou seu progresso econômico.

Em 2018, o então candidato à presidência da república Jair Bolsonaro, num dos seus discursos anti-China, fez a seguinte “observação”: “Os chineses não estão comprando no Brasil. Eles estão comprando o Brasil”. Tomou como exemplo a empresa China Molybdenum que comprou uma mina de nióbio por US$ 1,7 bilhão no ano de 2016. Segundo Bolsonaro, o próprio Brasil deveria desenvolver o empreendimento. Também registrou sua oposição à privatização planejada de alguns ativos da estatal Eletrobras, em razão do temor aos compradores chineses.

Entre 2007 e 2020, os chineses direcionaram 48% dos investimentos no setor de energia elétrica, em terras brasileiras, no qual há presença marcante de gigantes estatais como State Grid (maior transmissora de energia chinesa) e da China Three Gorges que arrematou hidrelétricas que pertenciam à estatal Cesp e comprou ativos da Duke Energy. Ambas as empresas são ainda fortes concorrentes em projetos de privatização, como os da Eletrobras e Cemig.

Após passar parte da campanha fazendo duras críticas à China, Bolsonaro mudou o discurso após tomar posse e passou a defender um reforço no comércio bilateral. No final de out/2019, Bolsonaro fez uma visita de Estado à Pequim e assinou 11 acordos de cooperação, principalmente nas áreas de energia e agronegócio. Durante a viagem, o presidente convidou Xi Jinping a participar do megaleilão do pré-sal.  Segundo o jornal Folha de São Paulo, já prevendo a possibilidade de fracasso dos leilões do pré-sal, o presidente brasileiro teria aproveitado a viagem à China para pedir a Xi Jinping que petroleiras chinesas participassem dos certames.

Essa mudança de atitude do presidente, se fosse algum tempo atrás, seria visto com preocupação pelos militares, alegando que essas cooperações poderiam trazer instabilidade das instituições do país. Quando Jânio Quadros renunciou à presidência (1961), o vice João Goulart estava na China em uma delegação responsável por aproximar economicamente a China ao Brasil. João Goulart foi comunicado que deveria retornar ao Brasil para assumir a presidência. No entanto, ministros militares formaram uma junta para impedir a posse de João Goulart, alegando que essa presidência ocasionaria instabilidade das instituições do país.

Faz cerca de 10 anos que a China passou a ter uma participação mais ativa em concorrências para exploração de campos de petróleo no Brasil. Em 2012, um consórcio com a presença das estatais China National Petroleum Corporation (CNPC) e a China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) venceu o leilão do campo de Libra, um dos maiores do pré-sal. No leilão do pré-sal, realizado em 2019, no campo de Búzios, foi vencida por um consórcio formado pela Petrobras com as empresas chinesas CNOOC e CNODC. Dois dias depois, em um novo leilão, a chinesa CNDOC foi a única empresa estrangeira a fazer uma oferta em consórcio com a Petrobras. Foi arrematada na concorrência o bloco Aram, o mais nobre entre os cinco oferecidos. Importante ressaltar, que atualmente, a China é o maior importador do petróleo bruto brasileiro e que o Brasil avançou para o posto de terceiro maior fornecedor de petróleo bruto para China.

A área portuária é um dos setores que tem crescido em interesse por parte do governo chinês, a estatal China Communications Construction Company (CCCC), está investindo R$ 2 bilhões na construção do Terminal de uso privado no porto de São Luís, capital maranhense, formando assim duas rotas de escoamento da produção agrícola brasileira, ao sul e ao norte do país. A mesma CCCC está neste momento negociando um novo projeto, desta vez em Santa Catarina, também para a área de grãos, como em São Luís. O valor envolvido é da ordem de R$ 1 bilhão.

Em 2017 a China Merchants Group, uma companhia controlada pelo governo chinês listada em bolsa, pagou R$ 2,8 bilhões pelo Terminal de Contêineres do Porto de Paranaguá, o segundo maior do Brasil.

No ramo agrícola, os chineses são sócios majoritários com 53,4% da Belagrícola, produtora de máquinas e equipamentos paranaense com faturamento de R$ 2,8 bilhões. 

Outros investimentos incluem ainda: a Shangai Pengxin Group/Fiagril (insumos agrícolas e grãos), a Fosun/Guide (corretora investimentos) e a DIDI (Uber chinês) que comprou a brasileira 99.

Mas há outras companhias de grande porte que estão presentes ou investem no Brasil, tais como: BYD (maior produtora de baterias e veículos elétricos do mundo), Chery (montadora de automóveis), Lenova (computadores), Midea (fabricantes de eletrodomésticos) e a Petro China Company (maior petrolífera da China) que já comanda milhares de postos em solo brasileiro.

As empresas chinesas efetivaram 176 empreendimentos no Brasil, entre 2007 e 2020, com aportes que somam US$ 66,1 bilhões. Em 2019, pela primeira vez o Nordeste atraiu a maioria do número de projetos chineses no Brasil, com participação de 34%, seguido por Sudeste (27%), Sul (15%), Norte (12%) e Centro-Oeste (12%). O Nordeste também liderou a atração de aportes em termos de valor, com mais da metade do capital investido naquele ano.

Estima-se que 34,5 mil empregos foram criados no Brasil entre 2003 e 2020 por conta da entrada de novos projetos chineses (greenfield), ao mesmo tempo que as aquisições de ativos já existentes mantiveram 140,4 mil postos de trabalho no país.

Num período em que a economia foi prejudicada pela pandemia, os investimentos chineses no Brasil caíram de 74% em 2020, mas somam US$ 66,1 bi em 14 anos.  Entrada de capital chinês no País somou US$ 1,9 bilhão em 2020, o menor valor desde 2014, segundo o Conselho Empresarial Brasil-China, mas se consolida como principal destino de investimentos de Pequim na América do Sul. Apesar disso, a corrente de comércio (soma de exportações com importações) com a China bateu recorde em plena pandemia, chegando a US$ 101 bilhões em 2020.

Principais produtos exportados para China em 2019: soja, óleo bruto petróleo, minério de ferro, celulose, carne bovina, carne de frango, ferro ligas, algodão em bruto, carne de suíno e minério de cobre. Os principais produtos importados da China pelo Brasil em 2019 foram: manufaturados, circuitos impressos, motores, geradores, transformadores elétricos, circuitos integrados, tecidos de fibra têxteis/sintéticas/artificiais, peças para veículos, automóveis, tratores, inseticidas, formicidas, herbicidas, produtos laminados de ferro ou aço, bombas, compressores, ventiladores, aparelhos eletromecânicos ou térmicos para uso doméstico, e plataformas de perfuração ou exploração, etc.

A globalização abriu as fronteiras do comércio e tem gerado consequências de longo alcance. Parece que as nações idealizadoras do processo de globalização não se preocuparam com o que iria acontecer no seu país depois de certo tempo. É irônico, mas uma das características do processo de globalização é que ele concentrou a manufatura num pedaço da Ásia.

No caso específico do Brasil, essa avalanche de investimentos dos chineses em nosso território me fez lembrar do professor e jurista Celso Ribeiro de Bastos, ao analisar a soberania brasileira, concluiu: “Ter a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir nos seus negócios.”

Não estou querendo dizer que essa “avalanche” possa ser um risco para a soberania brasileira mas entendo que a sociedade brasileira tenha que ter clareza de todo o processo que envolve a venda de ativos público, e até privados, porque os políticos passam e as consequências perpetuam para muitas gerações.

Por exemplo, podemos lembrar que no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ocorreu significativa venda de ações da Petrobras. Hoje, a União detém apenas 36,75% do capital total. O restante do capital ficou assim distribuído: 42,79% com investidores não-brasileiros e 20,46% com investidores brasileiros. Boa parte negociados na Bolsa de Nova York. Antes das vendas no governo tucano, a parte da União superava 80%.

Será que ainda temos a soberania sobre um dos nossos maiores patrimônio nacional? Já perdemos a maioria do capital total e agora estamos assistindo o desmanche da holding. Nos últimos dois anos, tivemos a venda da Petrobras Distribuidora, da rede de Gasodutos, de campos terrestre e marítimos, recentemente tivemos a venda da Refinaria Landulpho Alves (RLAM). Outras vendas de Refinarias já estão encaminhadas. Imaginem o que pode acontecer com nosso Pré-Sal.

Outro ponto importante é a aquisição de terras no território brasileiro. É fato notório que a China precisa ter acesso a mais alimentos. Dos 7,7 bilhões de habitantes do mundo, a China é responsável por alimentar, sozinha, 1,43 bilhão dessas bocas. Consequentemente, ela precisa assegurar terras que garantam o alimento de sua enorme população e crescente classe média. Os chineses já são os estrangeiros que mais possuem terras rurais nos Estados Unidos e na Austrália. No Brasil, é diferente, eles estão apenas em 9º lugar no ranking de terras em posse de estrangeiros. Aqui, o apetite chinês é freado pelas diversas restrições impostas para a aquisição de terras por quem não é do país, geralmente relacionadas ao tamanho da área a ser adquirida ou arrendada e ao percentual do território do município que já está nas mãos dos estrangeiros. Mas isso pode mudar, caso o Projeto de Lei nº 2963/2019 que foi aprovado pelo Senado Federal e atualmente tramita na Câmara de Deputados, seja também aprovado pela Câmara e depois sancionado pelo Presidente da República. O projeto de lei facilita a compra, a posse e o arrendamento de propriedades rurais no Brasil por pessoas físicas ou empresas estrangeiras

Os escândalos revelados pela Operação Lava Jato envolvendo as maiores empreiteiras do Brasil estão longe de serem vistos como fator de preocupação econômica ou de instabilidade política pelos investidores chineses. Pelo contrário, têm ajudado, já que os preços dos ativos caíram.

Esta conclusão vai na direção da afirmação do diretor para a área de infraestrutura da A.T. Kearney, Cláudio Gonçalves, que afirmou: “Hoje, o Brasil é um país que está barato, por conta do cenário político e econômico. E isso é visto como uma grande oportunidade pelo investidor chinês".

Não tenho bola de cristal para dizer as consequências desse apetite desenfreado chinês. Por exemplo, o impacto causado por grandes projetos que facilitam a exploração de riquezas naturais brasileira. Como os vizinhos ao sul da China já sabem, o país não é exatamente o mais preocupado do mundo com danos ambientais. Que o digam aqueles que sofrem com secas e, consequentemente, com a fome, em função do controle de barragens chinesas sobre rios para geração de energia.

Lembrando da frase de Xiaoping: "Não importa se o gato é preto ou branco desde que cace ratos". Para ele, não importava se o sistema econômico chinês era comunista ou capitalista, mas se ele funcionava.

Possivelmente para Xiaopin, a conquista de uma Grande China, não será com a espada, mas com a importante carteira de investimentos internos e externos. Bem, parece que o apetite da China não é pequeno, o mundo é que se cuide.

16 respostas para “Não importa se o gato é preto ou branco desde que cace ratos”

  1. Marco Morais disse:

    Excelente análise. Parabéns pelo Blog de altíssimo nível. 👏🏻👏🏻👏🏻

  2. Fábio Pedrosa disse:

    Parabéns pelo Blog, ótimas leituras.

  3. Luiz Antônio Costa Carneiro disse:

    Excelente Viana. Impressionante a diferença da nossa pauta de exportação e de importação da China. São 500 e tantos anos de colonialismo, mudando apenas os colonizadores e as commodities da moda.

  4. Filipe Bruno disse:

    Parabéns pelo texto Viana. Excelente análise. Impressiona como continuamos exportando commodities e importando produtos de alto valor agregado, reduzindo emprego aqui dentro e garantindo lá nos parceiros.

  5. Nelio Wanderley da Silva disse:

    Uma análise profunda e muito didática. Show amigo Viana.

  6. Naxnara disse:

    Parabéns, Viana, pelas análises trazidas aqui nesse veículo.

  7. Sandro Barreto Cardoso disse:

    Excelente analogia, Viana. As aquisições chinesas em terras tupiniquins não param. Com a instabilidade política, o Brasil está na alta temporada de compras.

  8. JDEUS disse:

    VIANA…Excelente postagem…parabéns…att JDeus.

  9. Marcilio Coutinho de Luna Freire neto disse:

    Uma verdadeira aula de comércio exterior, parabéns amigo!

  10. Carlos Estevam Mosca disse:

    Muito boa sua análise e contextualização sobre o avanço da China sobre o mundo. Não precisou disparar um tiro: mexeu com o mercado, teve paciência, deixou que todos os grandes produtores de manufaturados transferissem suas linhas de montagem na China e agora vendem para o mundo com tecnologia e qualidade impressionantes.

  11. JOÃO WILSON DE LUNA FREIRE disse:

    👍👍👍

  12. Carlos Estevam Mosca disse:

    Mestre Viana, a China avançou porque se industrializou. Nenhum país no mundo será competitivo sem uma indústria forte e sem tecnologia.

  13. Francisco Ivan de Oliveira disse:

    Muito bom Viana.Excelente análise.

  14. Guilherme disse:

    Parabéns Viana, sua análise bem fundamentada,valeu!

  15. Marcus Soares disse:

    Parabéns pela qualidade das matérias Viana.

  16. Washington disse:

    Parabéns .

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